Induzimento a erro essencial na anulação de casamento entre LGBT e heterossexual - Parte II

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Há sete anos publiquei  Induzimento a erro essencial na anulação de casamento entre LGBT e heterossexual - Jus.com.br | Jus Navigandi

O Direito é um fenômeno cultural. Direito, então, é uma manifestação da espécie humana. Não é possível afirmar que Direito é universal, no sentido de ser igual em vários territórios, nas aglomerações humanas, nos Estados. O Direito vigente no Brasil difere do Direito vigente nos EUA, na Rússia, etc.

Os tratados e as convenções de direitos humanos podem ou não fazer parte do ordenamento jurídico de um país (Estado). No Brasil, os tratados que versão sobre os direitos humanos são considerados supralegais. Existe procedimento quanto à incorporação de tratado em direitos humanos no Brasil (Art. 5º, § 3º, da CRFB de 1988). Há debates calorosos sobre os tratados internacionais de aplicabilidade imediata ou não no Brasil. 

E quanto à norma do art. 5°, § 2º da CRFB de 1988, ela não acolhia com o mesmo peso [força normativa] os TIDH? Tanto não, que foi preciso o RE n°. 466.343/2008. No RE mencionado, os TIDH são considerados supralegais, acima das leis ordinárias, mas, ainda assim, abaixo da CRFB de 1988. Na loucura que se processa diante de tamanha dicotomia, quase uma viagem astral à base de LSD [dietilamida do ácido lisérgico], ainda se discute a eficiência [superioridade ou não] dos TIDH (Tratados Internacionais de Direitos Humanos) no Direito brasileiro.

Na teoria monista, deve prevalecer o pacta sunt servanda, isto é, as normas internacionais possuem hierarquia superior às normas do ordenamento jurídico interno de um país. Teoria dualista, o pacta sunt servanda não cria uma “superioridade”, sendo assim, as normas do ordenamento jurídico interno de um país são hierarquicamente superiores às normas internacionais. Mesmo na teoria monista há pensamentos doutrinários ambivalentes: alguns consideram que em caso de dúvida, sobre a hierarquia das normas, interna ou externa, prepondera o direito internacional; outros doutrinadores amparam o primado do direito interno de um Estado sobre direito internacional.

O Brasil avançou, querendo ou não, na questão da dignidade da pessoa humana. No artigo que publiquei, há sete anos, a possibilidade de pessoa heterossexual anular o casamento com pessoa [Lésbicas; Gays; Bissexuais; Transexuais, Transgêneros, Travestis; Queer; Intersexo; Assexual; Pansexualidade; “+”: Demais orientações sexuais e identidades de gênero. (LGBTQIAP+)]. Citei Immanuel Kant sobre o respeito ao outro ser humano, isto é, de não enganar, por qualquer motivo, outro ser humano. Ou seja, a não objetificação de outro ser humano.

O erro essencial quanto à pessoa, e a possibilidade de anulação do casamento, existe no ordenamento jurídico pátrio:

Código Civil

Art. 1.557. Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge:

I - o que diz respeito à sua identidade, sua honra e boa fama, sendo esse erro tal que o seu conhecimento ulterior torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado; 

Setes anos se passaram, e muito mudou na sociedade brasileira e no Direito, este como reflexo social. Ainda que não fosse reflexo social, de aplicação e garantia da dignidade dos LGBTQI+, na CRFB de 1988 prevalece e defende a dignidade humana — arts. 1º, III, 3°, 5º, V, X, XXXV —, assim como leis infraconstitucionais — arts. 138, 139 e 140, do CP; arts. 186, 187 e 927, do CC. E mesmo que houvesse qualquer impedimento quanto à dignidade dos LGBTQI+, quanto aos seus direitos civis e políticos, no Executivo e Legislativo, o Judiciário tem o poder-dever, pela separação dos poderes, de garantir os direitos civis e políticos dos LGBTQI+. Foi o que ocorreu na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 [Supremo Tribunal Federal (stf.jus.br)].

Mesmo que STF ficasse inerte, a possibilidade da comunidade LGBTQI+ garantir a sua dignidade pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH). E no caso da Rússia, que considerou as comunidades LGBTQI+ como “terroristas”? Existem vários mecanismos possíveis para garantir os direitos humanos dos LGBTQI+ como pressões de outros Estados: bloqueios econômicos. Também é possível denúncias de organizações não governamentais (ONGs) para repudiar, moralmente, decisões do governo russo contra os LGBTQI+. E quanto à “intervenção humanitária” de outros Estados no território russo? Sim, é possível que um Estado perca, momentaneamente, a sua soberania quanto existem graves violações dos direitos humanos. Contudo, quais Estados irão intervir, com armamentos bélicos, no território russo? 

Aqui faço uma análise. Infelizmente, a força do poder bélico manda e desmanda sobre a “pena da lei”. E cada vez mais os direitos humanos são enfraquecidos. As guerras atuais poderiam ser extintas se houvesse interesses na espécie humana e não em determinados seres humanos em determinados Estados, regiões. E determinados seres humanos ditos “bons cidadãos”, “seres humanos iguais” (utilitarismo).

Deixo tais questões para outro artigo.

Pois bem! Na atualidade, a possibilidade de anulação de casamento de pessoa heterossexual com pessoa LGBTQI+. Existe a possibilidade de troca de nome, o nome social, no documento de identidade, mas não na certidão de nascimento. Por exemplo. Joana, sendo uma mulher cisgênero — nasceu com os órgãos femininos como útero, vulva, etc. —, mas em suas emoções e psique, sente-se como homem. Joana resolve (art. 5º, I, da CRFB de 1988) ter o nome de Carlos. Também é um direito de Joana ser reconhecida como “ele”. Assim, Joana quer ser, socialmente, reconhecido como Carlos e que o pronome reto seja “ele”. 

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Imaginemos:

1) Uma pessoa quer casar com outra pessoa. Ambas são cisgêneros. Já como cônjuges, um descobre que a outra pessoa é nordestina. Por não gostar de nordestinos, quer a anulação do casamento por ser uma “desonra” para a sua família.

2) Duas pessoas. Uma branca e outra albina. Casamento. Uma delas descobre que a outra, que é albina, é descendente de africanos. A pessoa branca é supremacista branco. “Misturar os sangues (eugenia) é abominável”, diz a pessoa supremacista.

3) Solteiro e solteira, ambos cisgêneros. Relações sexuais duas vezes no dia, de segunda a sábado. Casamento. Após três anos, duas relações sexuais, a cada dois meses.

No item “3” a possibilidade, ou não, de pedir anulação do casamento. 

Nos itens “1” e “2”, impensável o pedido de anulação de casamento. Nos itens “1” e “2”, a pessoa que pede a anulação do casamento poderá ser condenada por racismo.

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988

 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(...)

III - a dignidade da pessoa humana;

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

(...)

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;

LEI Nº 7.716, DE 5 DE JANEIRO DE 1989

Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

Impensável de o Estado criar uma norma a proibir o casamento de pessoa católica com pessoa umbandista. Não há o que debater.

Ora, se o STF considerou crime de racismo contra LGBTQI+, o mencionar de pessoa cisgênero em anular casamento com LGBTQI+, mesmo a justificar dogma religioso, não deixa de ser racismo. Se assim não for, não há racismo quando pessoa pedir anulação de casamento pelos exemplos dos itens “1” e “2”. Lembremos do Habeas Corpus (HC 82424). As palavras do ex-ministro do STF Marco Aurélio:

"A questão de fundo neste habeas corpus diz respeito à possibilidade de publicação de livro cujo conteúdo revele ideias preconceituosas e antissemitas. Em outras palavras, a pergunta a ser feita é a seguinte: o paciente, por meio do livro, instigou ou incitou a prática do racismo? Existem dados concretos que demonstrem, com segurança, esse alcance? A resposta, para mim, é desenganadamente negativa."

O Direito é um reflexo social. No Código Civil de 1916, a mulher, cisgênero, tinha que pedir expressa autorização do marido para ela poder laborar fora do lar. Com a promulgação da CRFB de 1988, e pela aplicabilidade do neoconstitucionalismo, a revogação do CC de 1916, por incompatibilidade com a CRFB de 1988 (art. 5º, II). Outro reflexo social no Direito, a Lei do Divórcio. As normas jurídicas podem ser criadas pelos poderes da República (Legislativo, Executivo e Judiciário). As normas sociais, não são sempre coesas com as normas jurídicas. 

É enorme desafio para os juristas sobre a possibilidade de anulação de casamento pelo pedido de pessoa heterossexual. A possibilidade de se justificar por trans mulher não ter útero, e não poder gerar vida, poderá ser aceito nos tribunais. No entanto, diante do ordenamento jurídico, como a possibilidade do nome social, as possibilidades médicas como as intervenções cirúrgicas, as aplicações hormonais, haverá uma justificativa para o engano reclamado pela pessoa heterossexual? O desejo de ter filhos (as) diante da impossibilidade biológica do (a) outro (a) cônjuge. Os juízes poderão interpelar sobre a consulta prévia sobre a condição biológica, de gerar ou não prole. O problema: os motivos, mas a intenção? Se um homem cisgênero quer casar com uma mulher, também cisgênero, e pergunta se a mulher poder gerar filho em seu ventre: pode, tudo bem; não pode, a possibilidade de adoção. O importante é a companheira, o querer um lar com ela. A prole, não biológica, é um desejo, não maior do que negar o casamento.

A interpretação do (a) juiz (juíza) é que sondará a intenção para a anulação do casamento ou não. 

Sobre o autor
Sérgio Henrique da Silva Pereira

Articulista/colunista nos sites: Academia Brasileira de Direito (ABDIR), Âmbito Jurídico, Conteúdo Jurídico, Editora JC, Governet Editora [Revista Governet – A Revista do Administrador Público], JusBrasil, JusNavigandi, JurisWay, Portal Educação, Revista do Portal Jurídico Investidura. Participação na Rádio Justiça. Podcast SHSPJORNAL

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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