Ética, moral e Direito em Jornada nas Estrelas. O que podemos aprender?

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O filme Jornada nas Estrelas, a Ira de Kan (https://youtu.be/GAoEU3HcCRk)

Sim. Sou fã de Jornada nas Estrelas. E há muitos outros fãs. Não se trata tão somente de entretenimento. Questões filosóficas estão presentes desde a primeira série televisiva. Em um período de racismo, de “nós” e “eles”, na Guerra Fria, a série original de Jornada nas Estrelas foi além do tempo e do espaço de sua época. Teve beijo inter-racial, um “horror” para a época, uma possibilidade de “indução comunista”, por ter um tripulante soviético na tripulação. E as minissaias das tripulantes? Tudo chocou. Mesmo assim, com baixo orçamento, a série se transformou num ícone de ficção científica. Mais do que isso, uma filosofia de vida para os seus fãs.

No vídeo, aqui disponibilizado, temos o Projeto Gênesis. Uma tecnologia capaz de gerar vida em ambientes sem qualquer tipo de vida. A tecnologia, por questões filosóficas, ou pela Federação não ter o discernimento suficiente para produzir tal tecnologia, não foi concluída. Mas uma equipe, clandestinamente, isto é, sem o aval da Federação, continuou com o Projeto Gênesis.

No diálogo entre Spock (Vulcano) e Magro (médico da Interprise) a questão da vida e de seu valor diante da nova tecnologia. Para Magro, o poder da criação nas mãos da espécie humana, e também da destruição quando houver vida. Para Spock, sem os valores morais e éticos, o uso do Projeto criaria uma nova matriz sobre a matriz existente, ou seja, uma vez detonada a “bomba” do Projeto, a vida existente daria lugar para outra vida. Spock cita “lógica”.

A lógica pressupõe conhecimento. Por exemplo, a ciência médica informa que lavar às mãos antes de qualquer refeição evita contaminação, como ocorreu na pandemia de 2020 por Covid-19. A espécie vulcana possui o seu lado religioso, as tradições culturais, e o lado científico. As emoções foram contidas pela lógica. Se uma pessoa morrer não há mais nada a fazer. Lágrimas não trarão a pessoa de volta. Isso não quer dizer indiferença a pessoa morta. Ainda há respeito, consideração pela pessoa morta. Num momento de gravíssimo perigo, como deslizamento de terra, as emoções, de medo, de pavor, etc., em nada contribuirão para encontrar uma solução. O medo paralisa; o medo pode fazer com que a pessoa em perigo corra, por ação do instinto de sobrevivência. No entanto, as reações são instintivas. A “frieza” em analisar a situação pode dar maiores chances de sobrevivência. Isso parece desumano, mas existem treinamentos para o controle das emoções e agir com inteligência, ou melhor, “razão”. 

Os militares são treinados a controlarem suas emoções diante do perigo. Para isso, os treinamentos antes dos combates. Nos EUA, por exemplo, em seis meses uma pessoa pode ser treinada para o combate, desde o uso de armas até controle emocional. Tem um, porém, muitos retornam com sérios problemas de saúde mental. Na Primeira Guerra Mundial, ex-combatentes tiveram seriíssimas consequências emocionais e psíquicas ao regressarem para seus lares. A espécie vulcana treinou por séculos.

Retorno para o nosso conturbado orbe. Guerras por ideologias, sejam elas econômicas, étnicas, religiosas, etc. Muito pouco provável o Projeto Gênesis seria usado em qualquer parte deste orbe. Tomemos como exemplo o filme premiado Oppenheimer. Belíssimo filme sobre questões existenciais como moral, ética, necessidade, atualidade, posterioridade. Como filme hollywoodiano, não foi contato tudo. A área de teste para a nova tecnologia, a bomba atômica, era um cemitério indígena. Não foram respeitados os locais quanto às memórias dos mortos ali enterrados. Atualmente temos a palavra “dignidade humana”. 

O lançamento da bomba do Projeto Gênesis levanta questões éticas e morais. O cemitério com as ossadas dos indígenas desencadeou debates éticos e morais. A comunidade indígena ficou indignada pela desconsideração das autoridades norte-americanas com o local sagrado para a comunidade indígena. Existia uma conexão espiritual com os antepassados. Para os norte-americanos, não originários dos povos indígenas, os cemitérios representam locais sagrados de seus entes queridos falecidos. Com certeza, seria uma profanação do Estado se testes nucleares fossem feitos nalgum cemitério.

Da ciência das comunidades indígenas, sobre o cemitério com os seus antepassados, e com a divulgação pelos jornalistas, as discussões sobre dignidade humana. Claro, os testes ocorreram na localidade em nome do “bem maior”. Os nazistas estavam desenvolvendo a bomba atômica. Os EUA resolveram desenvolvê-la primeiramente. Houve ou não necessidade de testar em solo japonês, outra questão ética e moral. Alguns cogitaram a necessidade de terminar a guerra, por durar muito tempo e causado prejuízos enormes para a humanidade. Outros viram os lançamentos das bombas nucleares no Japão como uma vingança por terem os japoneses atacados Pearl Harbor.

Muitas outras questões morais e éticas também foram trazidas à luz da razão humana — os direitos humanos têm fortíssimas influências da filosofia kantiana — sobre os ataques dos Aliados (Inglaterra, EUA, etc.) sobre a cidade de Dresden na Alemanha nazista. Milhares de civis alemães morreram pelos bombardeios dos aviões dos Aliados. Isso foi questionado pelos réus nazistas no Julgamento de Nuremberg. O Tribunal de Nuremberg foi um tribunal de exceção, por ser criado após os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial. Os nazistas ali julgados justificaram suas ações por decisões vindas do Estado. As justificativas não foram aceitas no Tribunal de Nuremberg. Prevaleu a dignidade humana, isto é, não é possível coisificar, instrumentalizar a pessoa humana pelo poder do Estado; muito menos pelo poder de qualquer governante.

Em Jornada nas Estrelas, a Ira de Kan, o Projeto Gênesis. Sem análises, ética e moral, a possibilidade de lançar em qualquer local, lugar, mesmo que exista vida orgânica; qualquer uma. É criado uma norma, pelos poderes constituídos, legalmente. Tanto o Poder Executivo, o presidente da República sanciona, quanto o Poder Legislativo, este decreta, a legalidade da norma no ordenamento jurídico. Pela Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, se a nova norma passou pelos ritos legais, não há de se falar em ilegalidade, quando a nova ordem está conforme a norma superior, a Constituição.

“Constituição” da Federação. Há a “dignidade humana”; isso é o suficiente para garantir o não lançamento da bomba do Projeto Gênesis? Não! Se olharmos, como bem disse Spock, implicitamente, a História da espécie humana é bem diferente do que está escrito. A dignidade humana não é o pressuposto da ordem jurídica, mas a vontade e os anseios humanos. Percebemos isso nos lançamentos das ogivas nucleares no Japão. Também percebemos nas guerras Ucrânia e Rússia, Israel e Palestina. O Direito Internacional normatiza às relações entre Estado. Existe “os pactos devem ser respeitados”. O que se viu foram interesses nas votações sobre as duas guerras na Assembleia Geral da ONU. Há tempo se discute, na ética jornalística, a isenção. Enquanto no Ocidente os jornais se ocupam somente com as mortes em Israel, o Oriente se ocupa com as mortes provocadas por Israel. A Rússia se preocupa com os seus mortos, a Ucrânia se preocupa com os seus mortos. Se existisse o Projeto Gênesis na atualidade da espécie humana, provavelmente seria uma “guerra limpa”. 

Putin já declarou sobre a ameaça nuclear se o Ocidente tentar impor diretrizes sobre o território da Ucrânia. Lançar ogivas nucleares é uma “guerra suja”, por haver corpos, escombros e, principalmente, o fim da espécie humana. Usar o Projeto Gênesis garante a não destruição da espécie humana. Outro episódio da franquia Jornada nas Estrelas: “A Taste of Armagedom” (Um Gosto do Armagedon). Nesse episódio, dois planetas em guerra, por muito tempo. Para poupar perdas, de ambas espécies, de edificações, etc., um computador para calcular perdas de ambos os planetas. Os “mortos”, computados, seriam desintegrados numa câmara. 

O filme Star Trek Beyond [Jornada nas Estrelas sem Fronteiras]. Krall e sua defesa utilitarista.

Recomendo ler Aprendendo com a filosofia de Jornada nas Estrelas - Jus.com.br | Jus Navigandi.

 Krall e sua tripulação tiveram que aterrizar num planeta desconhecido. Para ele sobreviver, usou tecnologia alienígena, encontrada no planeta, para sobreviver. A Federação Unida dos Planetas, para Krall, era uma instituição perversa, pois, nas palavras dele, nunca se importou em procurá-lo. Krall se sentiu traído pela Federação Unida dos Planetas e jurou destruir tudo que fosse relacionado a ela. Krall viveu numa época em que as guerras eram comuns. Ele foi educado — ou seria doutrinado pelo Estado? — para combater inimigos. Para Krall, a Federação Unida dos Planetas assumiu uma filosofia que enfraqueceu os seres humanos: paz. O complexo Krall apresenta justificativas plausíveis para sua ira contra a Federação Unida dos Planetas. Krall, então, antes da paz total promovida pela Federação, era exímio cidadão/patriota. Agiu conforme o utilitarismo de sua época, e foi, com certeza, aplaudido pelo Estado e pelos concidadãos. Krall, como ótimo cidadão e patriota, defendia a forma de viver verdadeira, justa. A Federação Unida dos Planetas, por sua vez, era uma instituição contrária a tudo que aprendera, aos valores sociais e políticos dos quais foram transmitidos como justos, corretos, benéficos ao grupo e a ele próprio. Agora, a Federação Unida dos Planetas, a tripulação da Enterprise e os habitantes do planeta Terra dizem que Krall está errado, e que sua postura constitui crime. Imaginemos que Krall, usando dobra espacial de sua nave, consegue voltar no tempo, para ser exato, o início do século XXI. Os direitos humanos visam à paz entre os povos, aos moldes da Federação Unida dos Planetas. Para Krall, os direitos humanos é uma ameaça que deve ser combatida, pois vai de encontro a tudo que acredita, ao que aprendera como verdadeiro, absoluto, justo para si e para a humanidade. Não seria difícil para Krall encontrar seres humanos afins, isto é, que fossem soldados para sua causa justa, correta. Os direitos humanos, o início da Federação Unida dos Planetas, deveria ser extirpada antes que se fortalecesse e corrompesse todos os seres humanos.

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Jornada nas Estrelas continua a fomentar questões éticas e morais. Diante das guerras atuais, diante do enfraquecimento dos direitos humanos neste orbe, do Direito Internacional como interesse de cada Estado, e não na espécie humana, o Direito — da espécie humana —, sem ética e sem moral, é a barbárie como a humanidade vivenciou antes da Era dos Direitos Humanos (pós Segunda Guerra Mundial). 

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) afastou o poder moderador das Forças Armadas. A "intervenção militar" foi invocada, até por operadores de Direito, para conter ameaças internas no território brasileiro. A "Minuta do Golpe" representa uma realidade, de que é possível usar o positivismo para aplicar golpes e instituir uma Nova Ordem Mundial, ou seria restituir ordem?

As questões éticas e morais em Jornada nas Estrelas servem para este século e séculos posteriores. 

Termino com mais um filme: Jornada nas Estrelas VI: A Terra Desconhecida. Após a explosão da lua Praxis, os klingons são obrigados a propor um acordo de paz para garantir a sobrevivência de sua espécie. A tripulação da Enterprise é convocada para escoltar a missão diplomática klingoniana até o local da reunião, mas a nave klingon é atacada e o chanceler klingon acaba sendo morto. Quando se cogita "paz", a ideia não é compartilhada por todos. Saindo da "ficção" para a realidade:

  • Os Acordos de Oslo, que buscavam lançar as bases para a autodeterminação palestina. O primeiro-ministro de Israel, Yitzhak Rabin, foi assassinado em 4 de novembro de 1995 por um estudante de direito israelense ligado a grupos extremistas de direita;

  • O atentado de Sarajevo, sofrido pelo arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro da coroa austríaca. Na ocasião, o nobre e sua esposa foram assassinados a tiros, na capital da Bósnia. O autor do ataque foi um estudante nacionalista sérvio.

Existem vários outros atentados. A palavra "terrorismo" é usada para designar um grupo, "célula", contra a democracia. Ocorre que a democracia pode ser uma palavra que emprega bons significados, mas sua aplicação é violenta, por interesses econômicos, expansões territoriais. 

Interessante observar, pela linguística, que as palavras passam por mudanças também. A linguística, como o Direito, também é um fenômeno histórico e cultural. Exemplos:

1. Archaicismo — palavras que não são mais usadas no idioma contemporâneo, mas que existiam em algum período anterior. Exemplos: "Vossa mercê" (por "você"), "outrora" (por "hoje em dia"), "trovar" (por "encontrar");

2. Obsolescência — Definição: Termo mais abrangente que o archaicismo, pois inclui palavras que estão em processo de desuso, mas ainda podem ser usadas em alguns contextos específicos. Exemplos: "Achaque" (por "doença"), "empecilho" (por "obstáculo"), "façanha" (por "ação");

3. Desuso — Refere-se ao estado de uma palavra que não é mais utilizada em nenhuma situação. Exemplos: "Afindar" (por "acabar"), "cousa" (por "coisa"), "preito" (por "homenagem");

4. Neologismo — Refere-se a uma palavra nova que surge na língua. Exemplos: "Bitcon", "selfie", "googlar" (dar um Google);

5. Morte Lexical — Termo menos utilizado, refere-se ao desaparecimento completo de um significado de uma palavra;

6. Mudança semântica — Refere-se à modificação do significado de uma palavra ao longo do tempo. Exemplos: "Fera" (que significava "animal selvagem" e passou a significar "pessoa cruel"), "livro" (que significava "casca de árvore" e passou a significar "obra escrita");

O Direito fenômeno histórico e cultural. A linguística também é fenômeno histórico e cultural; é alterável, dinâmica. As multiplicidades de palavras, em vários idiomas, caracterizam cada cultura humana. O Direito, tal como a linguística, quanto ao fenômeno histórico e cultural, é um identificação de cada cultura. Na linguística é possível estudar às relações humanas, o que está subjacente no significante da palavra. O Direito, sem Justiça, não elucida os significados das normas, apenas se fixa ao que está escrito. É o positivismo. Ir além da norma é adentrar: qual o sentido da norma, qual o seu propósito na sociedade, quais comunidades serão atingidas diretamente, quais comunidades não serão atingidas etc.

Podemos, então, tranquilamente, pensar assim: tanto o ordenamento jurídico pátrio, que é o direito interno de um Estado — conjunto de leis, regulamentos, jurisprudência e princípios que regem a vida legal dentro desse país. —, quanto o Direito Internacional, que é o Direito Internacional Público — normas e princípios que regem as relações entre Estados soberanos —, possuem motivos e intenções. Se esses motivos e intenções têm a ver com a prevalência da dignidade humana, uma outra história.

Sobre o autor
Sérgio Henrique da Silva Pereira

Articulista/colunista nos sites: Academia Brasileira de Direito (ABDIR), Âmbito Jurídico, Conteúdo Jurídico, Editora JC, Governet Editora [Revista Governet – A Revista do Administrador Público], JusBrasil, JusNavigandi, JurisWay, Portal Educação, Revista do Portal Jurídico Investidura. Participação na Rádio Justiça. Podcast SHSPJORNAL

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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