Sindicância: o passo a passo da investigação administrativa

02/03/2024 às 13:48
Leia nesta página:

A ordem lógica dos procedimentos, a partir do método das investigações da polícia judiciária.

 

Concentre-se a atenção em torno do instituto da sindicância, deixando clara a sua correlação com a figura jurídica do inquérito. Como tal, trata-se de um expediente de investigação, que exige conhecimento de método específico.

 

É conveniente, de plano, explicar que a pobreza legislativa impediu que os agentes controladores estejam seguros quanto ao método de apuração administrativa e, ainda, deixou espaço para que fossem criadas figuras impróprias e confusas a circundarem esse meio. Assim, tem-se de conviver com diversas espécies de sindicâncias que surgiram no avulso, menos produtos da lei e mais a conveniência de acomodação às necessidades que surgiam sem respostas à altura. E, assim, há de serem consideradas, pelo menos:

 

·        Sindicância investigativa – que é a própria, a original;

·        Sindicância acusatória – que é imprópria, uma vez que, na prática, é algo como um processo sumário;

·        Sindicância híbrida – uma mistura das anteriores, com uma fase investigativa e uma fase processual;

·        Sindicância patrimonial – atinente à verificação de patrimônio de funcionários cuja origem aparentemente esteja a descoberto;

·        Sindicância sem relação com disciplina – quando, por exemplo, examinam-se irregularidades praticadas por empresas na execução de um contrato administrativo; ou para levantar situações que demandem a prevenção de novos acidentes;

·        Sindicância de vida pregressa – relacionada a examinar se o passado não condena candidatos a cargos públicos de relevo, normalmente nas chamadas carreiras de Estado.

 

Em que pese essa barafunda, entende-se que a sindicância pura, a única que deveria existir, é aquela de formato inquisitorial, preparatório de eventual processo. E desta que aqui trata o presente estudo.

 

É da rotina da Administração instaurar sindicâncias por qualquer episódio fora da normalidade. Entretanto, a própria sindicância requer juízo de admissibilidade, sendo, por vezes, conveniente que o gestor se antecipe com as figuras da averiguação ou da investigação preliminar[i]. Esses recursos oferecem informações sobre razoabilidade, a fim de que não se movimente a estrutura sindicante, que é onerosa, por conta de algo cujo mínimo reflexo não se avaliou.

 

Sendo razoável, a autoridade nomeia uma comissão, muitas vezes constituída por funcionários que não têm qualquer familiaridade com técnicas de investigação, que, por ordem superior, terá que investigar casos complexos para os quais até mesmo a polícia judiciária teria dificuldades. Portanto, que fique entendido:

 

·        Sindicância equipara-se a inquérito;

·        Exige conhecimento de técnicas de investigação;

·  Tem um método lógico que permite que os esclarecimentos avancem sequencialmente.

 

Os estatutos funcionais, onde a sindicância está prevista, em regra não explicam como ela será burilada. Mandam instaurar, ordenam que a autoridade nomeie sindicante(s) e estabelecem prazo de conclusão. Por fim, declaram que da sindicância poderá resultar arquivamento ou abertura de processo (ou aplicação de pena branda, o que confunde a sindicância com processo).

 

O fato de os estatutos não explicarem como uma sindicância é feita não autoriza os membros da comissão (idem controle interno, serviço jurídico, etc.) a conceberem aleatoriamente modelos, muitos deles verdadeiramente esdrúxulos. Ora, se sindicância é, na verdade, um inquérito administrativo, devem ser empregadas subsidiariamente as regras dos inquéritos que tramitam em outras esferas. E onde estão essas regras? Na falta de regramento na lei e na ausência de disciplina interna, o agente sindicante pode seguir, com os devidos ajustes, a metodologia que o Código de Processo Penal estabelece para os inquéritos policiais. É o que se vê a seguir.

 

FORMATO DE UMA INVESTIGAÇÃO

 

Primeiro passo

 

A sindicância é instaurada por Portaria, sendo dispensável a publicação. Como não há acusados, não há terceiros legitimamente interessados na publicidade para, a partir dela, reagir. E como uma investigação não interrompe prescrição, a publicidade não teria esse efeito no caso da sindicância. Serviria apenas para alardear ao mundo que há uma investigação em curso, alertando os suspeitos e inviabilizando, muitas vezes, o recolhimento da prova. Em investigação profissional costuma-se acentuar que ela será tão eficiente quanto menos os suspeitos dela tiverem conhecimento.

 

Está claro que a instauração não pode vincular a pessoas. A sindicância é instaurada para apurar fatos. Se trouxer indicação de pessoas, tornou-se um expediente acusatório, para o qual valem as mesmas regras do processo, a começar pelo contraditório e amplitude de defesa. E, nesse caso, é alta a probabilidade de se esclarecer coisa alguma.

 

Segundo passo

 

A autoridade sindicante (o sindicante ou comissão de sindicância) estuda meticulosamente o caso, examina os elementos que já existem, faz apontamentos sobre possíveis envolvidos e, em exercício de imaginação, procura entender tudo o que pode estar por trás da ocorrência. Todo investigador é desconfiado. Todo investigador experiente surpreende-se com os fatos. “Os fatos são mais ricos do que a ficção”, costuma-se anotar nessas circunstâncias.

 

Trata-se, aqui, de um trabalho intelectual. E é a partir desse preceito que são criadas as chamadas “linhas de investigação”.

 

Obviamente pressupõe-se que, aqui, a sindicância tem uma sede definida; um secretário nomeado pelo presidente e os recursos materiais e humanos necessários a uma investigação idônea.

 

Terceiro passo

 

É relevante que a autoridade sindicante faça diligência pessoalmente. Vá ao local onde os fatos aconteceram; converse informalmente com pessoas; examine sistemas, controles, ambientes, equipamentos – tudo o que possa de alguma forma ajudar a compreender a ocorrência.

 

Não se começa uma investigação atrás de uma mesa, expedindo mandados de intimação para testemunhas. Isso é burocracia, não é investigação. Investigador que se preza faz trabalho de campo, como manda o art. 6º do diploma processual penal.

 

Nesse trabalho em recinto externo, conhecerá novas testemunhas e, em conversas sem situação de estresse, colherá mais elementos do que iniciar a por meio de depoimento formal; poderá recolher provas materiais; terá referências para avaliar, enfim, a prova que posteriormente virá aos autos.

 

Quarto passo

 

Agora é a vez de trazer para os autos a prova identificada em operação de campo. Aquelas pessoas que foram abordadas em ambiente descontraído serão ouvidas formalmente; documentos serão juntados, etc.

 

As testemunhas (pessoas isentas) serão ouvidas com compromisso de honra em TERMO DE DEPOIMENTO.  É diferente daqueles que prestam DECLARAÇÕES, por terem, de alguma forma, a imparcialidade diminuída: interessados, cônjuges, parentes, vítimas e denunciantes, por exemplo, são declarantes e não depoentes.

 

Nessa fase, é plausível a necessidade de perícia, pesquisas ou de deslocamento para outras localidades para aprofundar o exame de determinados pontos que, em avaliação prévia, ficaram obscuros. Entram aqui: explorar informações na Internet, elaborar croquis, apreender coisas, reunir fotografias e vídeos.

 

Quinto passo

 

Quando se esquadrinha uma prova, geralmente ela se vincula a alguém. A testemunha cita um nome; o documento traz uma assinatura; uma auditoria reporta-se a pessoas. Sempre que uma prova levantar suspeita sobre um funcionário, esse indivíduo necessariamente será ouvido na sequência; e a oitiva se dará em TERMO DE DECLARAÇÕES, na condição de interessada. Nunca se rotule  essa pessoa de suspeita ou acusada, pois isso levaria a sindicância a retribuir com as garantias de um processo, o que confundiria o serviço. O mesmo acontece com o rótulo de sindicado, que se mescla com acusado, passando a garantir ao servidor ou empregado público o exercício do contraditório e da ampla defesa, que são inerentes aos expedientes de natureza processual. Esses direitos, de elevado valor, são exercidos, com efeito, em autos de processo. Nesse cenário, todas as provas estão recolhidas e os interessados já tiveram a oportunidade de oferecer explicações orais, pelo interrogatório. A fase seguinte será o processo quando, então, o conjunto probatório será contraditado e sobre os fatos elencados virão as razões da defesa.

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Os “interessados” intimados a prestar declarações podem comparecer acompanhados de advogados; não prestam compromisso e são provocados a explicar o envolvimento no caso, a partir de cada prova que lhe é apresentada.

 

Essas pessoas, contra as quais as investigações se direcionam, podem ser ouvidas tantas vezes quantas forem necessárias. Há inquéritos nos quais a autoridade policial ouve o cidadão dez ou quinze vezes. Em cada ocasião que aparece um elemento novo, a pessoa volta para se explicar.

 

Não é incomum que essas pessoas indiquem as suas provas. Falem de testemunhas. Reportem-se a documentos. Quando isso acontece, é necessário que o sindicante examine a conveniência de produzir avançar nesse exame. Não que esteja obrigado, mas sendo o esclarecimento o seu maior objetivo, deve avaliar a conveniência de tudo o que possa levar à elucidação do mérito.

 

 

Sexto passo

 

O sindicante precisa levantar provas sobre:

 

·        O fato;

·        A autoria;

·        As circunstâncias.

 

Para tanto, é empregada a clássica fórmula conhecida por “Hetpâmetro de Quintiliano”, seguindo a qual são esclarecidas sete questões:

 

·        QUEM?

·        O QUÊ?

·        ONDE?

·        QUANDO?

·        COMO?

·        COM QUE AUXÍLIO?

·        POR QUÊ?

 

Quando essas questões estivem respondidas e provadas, será a vez de ouvir novamente a pessoa contra a qual a prova se afirmou.

 

Veja-se que, na investigação, é possível que vários suspeitos tenham figurado. Todos foram ouvidos como “interessados”, em Termos de Declarações. Na medida em que a sequência da prova confirmou o envolvimento de alguém, esse alguém deverá retornar para ser INTERROGADO.

 

Esse é o principal momento no qual se rompe o sigilo da investigação. Toda a prova foi recolhida. Já há alguém sobre o qual recai efetivamente uma suspeita formal. Então, a autoridade deve franquear ao interessado ou a seus advogados o pleno acesso ao inteiro teor dos autos. Antes disso, em excepcionalidade, o conhecimento dos autos é limitado ao que já consta do caderno da investigação e se excluem apontamentos atinentes ao planejamento de trabalho futuro ou de provas que ainda estão com probabilidade de extensão.

 

Sétimo passo

 

Com a causa esclarecida aos olhos da autoridade sindicante (Heptâmetro de Quintiliano respondido e provado), virá o interrogatório, que é a oportunidade que a pessoa tem de fazer a autodefesa, ou seja, a defesa oral, respondendo a cada ponto de suspeita que lhe é apresentado.

 

O interrogatório obedece, em linhas gerais, a metodologia dos artigos 185 e seguintes do Código de Processo Penal.

 

Recomenda-se que o interrogando seja assistido. Ou comparecerá com advogado, se ou nomeia um servidor de igual nível hierárquico (ou superior) para acompanhar o ato, que oficiará como “defensor ad hoc”. Trata-se, aqui, de alguém que acompanhará o interrogando em um momento delicado da sua vida – um momento constrangedor, de estresse – e que atestará a regularidade do ato e a fidelidade dos registros. Portanto esse defensor, antes de defender o funcionário, defenderá a lisura dos procedimentos.

 

É recomendável, nesta etapa em particular, um conhecimento de psicologia jurídica. Pessoas inocentes muitas vezes são confundidas com culpadas por não conseguirem, em face do nervosismo, explicar as suas razões; e psicopatas e doentes morais são absolvidos porque têm inteligência acima da média e alta capacidade de manipulação.

 

Oitavo passo

 

É o estágio do juízo de valor. Com as explicações do funcionário, sobre o qual a suspeita se afirmou, a autoridade sindicante deverá:

 

a)    Propor o arquivamento;

b)    Propor abertura de processo disciplinar;

c)     Indiciar o interrogando (quando houver essa previsão no estatuto), para que ele apresente a defesa escrita e, depois, as provas do seu interesse, no exercício pleno da defesa. Nesta hipótese, a autoridade está diante do que se convencionou rotular de “sindicância híbrida”[ii], posto que é uma mistura de um expediente de investigação com um expediente processual.

 

Assim, então, se desdobra uma sindicância no melhor dos métodos. Para isso, é recomendável conhecer manuais de delegados de polícia, estudar técnicas de investigação, aprofundar o interesse no conhecimento das fraquezas humanas. A psicologia jurídica e a psiquiatria forense constituem elementos de interessante apoio.

 

 

 

 



[i] O autor tem estudos específicos sobre averiguação e investigação preliminar, a explicar, sobre cada procedimento, a conveniência, a oportunidade, a metodologia e os desdobramentos.

 

[ii] Denominação originalmente atribuída pelo autor na sua produção de doutrina.

Sobre o autor
Léo da Silva Alves

Jurista, autor de 58 livros. Advogado especializado em responsabilidade de agentes públicos e responsabilidades de pessoas físicas e jurídicas. Atuação em Tribunais de Contas, Tribunais Superiores e inquéritos perante a Polícia Federal. Preside grupo internacional de juristas, com trabalhos científicos na América do Sul, Europa e África. É professor convidado junto a Escolas de Governo, Escolas de Magistratura e Academias de Polícia em 21 Estados.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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