A falácia do ciclo completo de polícia

07/12/2023 às 17:25
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O termo falácia deriva do latim “fallere”, no sentido de confundir, enganar. Na argumentação, as falácias de destinam a persuasão e ao convencimento através de uma falsa racionalidade, muitas vezes com apelos emocionais que visam confundir, através de armadilhas lógicas, a percepção da realidade. Por vezes é muito difícil perceber as falácias.

A falácia do ciclo completo de polícia no Brasil se assemelha muito com a falácia do espantalho, aonde são encaixadas na argumentação situações hipotéticas, fora do contexto primário, que facilmente induzem ao erro, desviando o foco do tema principal que deveria ser o formato ideal de segurança pública para o Brasil.

Este espantalho, materializado pelo ciclo completo de polícia, aparece como desfoque para temas improváveis no ambiente da segurança pública, e a discussão culmina orbitando numa gama infinita de temas induzidos, menos sobre qual seria o modelo ideal de segurança pública para o Brasil.

“Mutatis mutandis”, ater-se ao discurso do ciclo completo de polícia e tê-lo como a solução para os problemas da segurança pública brasileira, é como em uma receita de bolo em que vários ingredientes são necessários e imprescindíveis, ater-se somente a quantidade de açúcar e tentar induzir ao entendimento de que o ele (o açúcar) é o bastante para todo o processo, como se fosse possível abandonar os outros ingredientes e somente o açúcar produzisse o bolo.

O problema da segurança pública é muito mais complexo do que o ciclo completo de polícia. Este interveniente, de forma isolada, produziria muito mais problemas do que soluções.

Há inúmeros textos sobre o ciclo completo de polícia, e muitos trazem como bons modelos de segurança pública, países como Estados Unidos e Espanha. Buscam como mote principal o modelo ideal de segurança pública para o Brasil, mas, rapidamente, trazem os espantalhos dos EUA e da Espanha como desvio de foco para fomentar a ideia falaciosa da beleza e eficiência do ciclo completo de polícia.

Estados Unidos e Espanha possuem ambiente de criminalidade absolutamente diverso do brasileiro, portanto, absolutamente inadequado o transporte da experiência estrangeira para o nosso ambiente de criminalidade de terceiro mundo.

Dizer, simplesmente, que Estados Unidos e Espanha adotam o sistema de ciclo completo de polícia e que por isso, naqueles países, a segurança é eficiente, não é um argumento sustentável, aliás, a validade de um argumento não é garantia da verdade de sua conclusão.

Ainda, deve-se tratar a segurança pública de um país com seriedade e cientificidade. Utilizar métodos indutivos para se chegar a conclusões, ou seja, fazer generalizações a partir de experiências individuais é temerário e revela muito mais do que o interesse na solução do problema.

É fato que nem todas as cidades ou estados americanos podem ser considerados seguros para o cidadão, e na Espanha não é diferente, embora ambos adotem o sistema de ciclo completo de polícia, logo, não estamos diante de uma fórmula milagrosa para os problemas da segurança pública brasileira.

O imaginário de segurança americano anda a pé pelas ruas de Manhattan durante a madrugada, mas não faz o mesmo nas ruas da Philadelphia, Memphis, Atlanta ou St. Louis, e lá o ciclo de polícia é completo.

Na Espanha, é fato que os crimes contra a vida têm taxas reduzidíssimas, mas não é sensato relaxar a guarda no centro de Barcelona, Marbella ou Madri, e lá o ciclo de polícia também é completo.

O ciclo completo de polícia, como espantalho para desviar o foco do objetivo principal, pode ser observado em números. A cidade americana de Saint Louis, com cerca de 319 mil habitantes, adota o sistema de ciclo completo de polícia e teve uma taxa de homicídios de 65,83 ocorrências por grupo de 100.000 habitantes, em 2016, conforme dados da BBC News. A cidade brasileira de Blumenau, em 2018, com cerca de 334 mil habitantes, não adota o ciclo completo de polícia e teve uma taxa de homicídios de 7,9 ocorrências por grupo de 100.000 habitantes.

O município catarinense de Brusque-SC, com 131 mil habitantes, possui uma taxa de 1,5 homicídios por grupo de 100.000 habitantes, sem ciclo completo de polícia. Uma taxa digna das melhores cidades europeias.

Fixando no nosso exemplo caseiro, a Polícia Civil de Santa Catarina apresenta índices de primeiro mundo na resolução de homicídios (sem ciclo completo). Em 11 anos de atividade, a Delegacia de Homicídios da Capital apresenta índice médio de 81,3% de resolubilidade, ou seja, determinação da autoria e, neste ano de 2019, apresenta 91,43% de resolução de crimes com determinação da autoria, sem ciclo completo.

Certamente a Espanha (que adota o ciclo completo de polícia) deve possuir municípios com índices de resolubilidade maiores, mas não maior do que Chapecó, município catarinense com 216 mil habitantes, com 100% de resolubilidade nos crimes de homicídio nos últimos três anos (sem ciclo completo).

É lamentável observar a apresentação de exemplos negativos como parâmetros para a afirmação falaciosa de que o modelo brasileiro é ruim, isso é um desserviço à sociedade. O problema não é de ciclo completo, incompleto ou pela metade, a questão é muito mais profunda com esteio em questões sociais que somente a maturidade de uma nação pode amenizar. Modificar o tecido da toalha que enxuga o chão não resolverá o problema se a torneira permanecer aberta.

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Defensores do ciclo completo, comumente detratores da atividade policial investigativa, que indicam aquele modelo como solução para todos os problemas, também deveriam ter a honestidade científica de informar que nos EUA, a polícia de ciclo completo possui seguimento uniformizados atuando na prevenção e na ostensividade, e seguimento sem identificação, atuando na investigação, sendo que um seguimento não interfere na atuação do outro.

Com estes dados e afirmações busca-se deixar claro que experiências individuais não devem ser utilizadas com o objetivo de obter conclusões genéricas. Nem para um lado nem para o outro, por isso os contrapesos apresentados. É cristalino que o método indutivo é inadequado para se obter conclusões verdadeiras quando o tema é segurança pública.

Há experiências boas e ruins, com ou sem o ciclo completo de polícia, portanto, reforça-se a conclusão de que o discurso do ciclo completo não passa de um espantalho para desviar a atenção do foco do tema principal que deveria ser o modelo de segurança pública brasileiro.

A solução para a insegurança pública não está no espantalho chamado ciclo completo de polícia, como se o problema da criminalidade se resumisse à investigação criminal. O que vem ocorrendo é muito mais do que simplismo, é oportunismo e corporativismo, no sentido pejorativo da palavra. Muito mais importante do que o ciclo completo, é uma Polícia Civil e uma Polícia Militar completas, com unidades policiais completas, equipamentos de segurança completos, viaturas completas, efetivos completos e salários completos.

A Constituição da República, em seu artigo 144, deu poderes às instituições de forma a se complementarem, evitando a hipertrofia de um único órgão policial e o livre arbítrio estatal.

A falácia do ciclo completo de polícia como solução isolada para o problema da criminalidade no Brasil é um desserviço à nação e à população, impondo uma fórmula milagreira desconectada da realidade, inexplicável, senão por interesses corporativos escusos de ampliação do espetro de atuação.

O ciclo completo de polícia somente é defensável dentro de uma lógica não corporativista e voltada ao bem da sociedade, se entendido como parte e não como todo, e antecedido de um modelo de polícia única, bem equipada, remunerada dignamente e com forte controle externo exercido pela sociedade civil.

Defender o ciclo completo sem as medidas antecedentes necessárias, equivale a instalar o caos nas forças de segurança, onde todos fariam de tudo, patrulhamento ostensivo, preventivo, investigação e formalização, confundindo atribuições e criando um monstro de várias cabeças brigando pelo mesmo prato de comida.

Já frisei em outros artigos que a confusão de atribuições é o estopim da discórdia.

Seria trágico, e nada cômico, a Polícia Militar com os parcos meios disponíveis que lhe impedem até mesmo de cumprir suas atribuições constitucionais, passar a investigar e a formalizar essa investigação, com a realização de autos, termos, perícias, cartas precatórias, intimando e reduzindo a termo declarações de testemunhas, vítimas e autores de crimes, transformando unidades militares em repartições de livre circulação pública. Fariam de tudo, menos a prevenção. Ou a Polícia Civil, no sucateamento em que sobrevive, passar a realizar o policiamento preventivo e patrulhamento das ruas. Fariam de tudo, menos a investigação. E as Guardas Municipais fariam tudo isso e mais um pouco, ou menos um pouco.

Se o objetivo é criar o caos, satisfazer vaidades, confundir a população, desagregar as forças policiais pela discórdia e criar várias polícias hipertróficas e conflitantes, o ciclo completo de polícia, aplicado de forma isolada como o salvador da pátria, é uma estratégia eficiente, no melhor sentido sarcástico do termo.

Sobre o autor
Aldo Pinheiro D Avila

Delegado de Polícia do Estado de Santa Catarina

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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