O prelúdio do fim do princípio do in dubio pro societate na decisão de pronúncia do Tribunal do Júri?

25/10/2023 às 16:14
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O presente artigo visa à análise da decisão proferida pela Sexta Turma do STJ, por meio do julgamento do RESP nº 2.091.647-DF, de Relatoria do Ministro Rogerio Schietti Cruz, em julgamento por unanimidade, ocorrido em 26/09/2023.

Primeiramente, antes de adentrar no objeto do julgamento supracitado, urge esclarecer os conceitos doutrinários acerca do in dubio pro reo e do in dubio pro societate, princípios do direito constitucional e penal, que se constituem de núcleo interpretativo para a aplicação de normas e de eventuais conflitos entre princípios.

A utilização do princípio do in dubio pro reo remonta os primórdios da civilização, no nascedouro da filosofia na Grécia antiga. Assim, em artigo publicado no sítio eletrônico Migalhas, o autor cita Aristóteles, no livro "Problemas relacionados à Justiça e à Injustiça", onde foi elaborada a seguinte argumentação1:

"(...) Além disso, qualquer um de nós preferiria proferir uma sentença absolvendo um malfeitor em vez de condenar um culpado inocente, no caso, por exemplo, de um homem sendo acusado de escravização ou assassinato. Pois deveríamos preferir absolver qualquer uma dessas pessoas, embora as acusações feitas contra elas por seu acusador fossem verdadeiras, em vez de condená-las se fossem falsas; pois quando qualquer dúvida é mantida, o erro menos grave deve ser preferido; é um assunto sério decidir que um escravo é livre, mas é muito mais sério condenar um homem livre de ser um escravo".

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB88), por meio do seu famigerado artigo 5º, inciso LVII, estabelece como direito fundamental que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Nessa linha, um dos desdobramentos do princípio da inocência (da não culpabilidade) é justamente o in dubio pro reu.

No ordenamento jurídico brasileiro, o Código de Processo Penal brasileiro vigente (CPP), em seu artigo 386, inciso VII, determina que o juiz absolva o réu quando não existir prova suficiente para a condenação. Nessa linha, a palavra “suficiente” é justamente a aplicação normativa do princípio do in dubio pro reu. A ilação é inexorável, pois não basta prova para que o acusado seja condenado, deve existir prova suficiente que permita o juízo condenatório.

A doutrina2 tece as seguintes considerações no que toca ao princípio do in dubio pro reo:

(...) por este princípio, deve-se privilegiar a garantia da liberdade em detrimento da pretensão punitiva do Estado. Apenas diante de certeza quanto à responsabilização penal do acusado pelo fato praticado é que poderá operar-se a condenação. Havendo dúvidas, resolver-se-á esta em favor do acusado. Ao dispor que o juiz absolverá o réu quanto não houver provas suficientes para a condenação, o art. 386, inciso VII, do CPP agasalha, implicitamente, tal princípio. Mitiga-se o princípio, a nosso ver, quando se tratar de decisão do Conselho de Sentença por ocasião dos julgamentos pelo júri.

Em paralelo à existência normativa-principiológica do in dubio pro reu, conforme demonstrado, o CPP, por meio do seu artigo 413, estabelece que o juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação. A doutrina, como já referido no trecho supracitado, e jurisprudências tradicionais interpretam esse dispositivo no sentido de que o juiz, avaliando a materialidade do fato e os indícios suficientes de autoria ou de participação, deveria aplicar o então princípio do in dubio pro societate (a dúvida em favor da sociedade), diante da competência constitucional do Tribunal do Júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida (art. 5º,inciso XXXVIII, “d”, da CRFB88)3. Em pesquisa no sítio eletrônico do STF, a última decisão sobre o tema, salvo melhor juízo, ocorreu no julgamento do AG. Reg. No Recurso Ordinário em HC. RHC nº 192846 Agr/SC, Segunda Turma, Min. Relator Gilmar Mendes, sendo decidido que o “princípio in dubio pro societate deve prevalecer na sentença de pronúncia, de modo que não existe, neste ato, ofensa ao princípio da presunção de inocência, uma vez que objetiva-se garantir a competência constitucional do Tribunal do Júri”.

Ocorre que o STJ, por meio da novel decisão proferida pela Sexta Turma do STJ, relativa ao julgamento do RESP nº 2.091.647-DF, de Relatoria do Ministro Rogerio Schietti Cruz, em julgamento por unanimidade, ocorrido em 26/09/2023, em suma, assim decidiu:

A pronúncia consubstancia um juízo de admissibilidade da acusação, razão pela qual o Juiz precisa estar "convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação" (art. 413, caput, do Código de Processo Penal). O juízo da acusação (judicium accusationis) funciona como um importante filtro pelo qual devem passar somente as acusações fundadas, viáveis, plausíveis e idôneas a serem objeto de decisão pelo juízo da causa (judicium causae).

(...)

Quanto mais embrionária a etapa da persecução penal e menos invasiva, restritiva e severa a medida ou decisão a ser adotada, mais tolerável é o risco de um eventual falso positivo (atingir um inocente) e, portanto, é mais atribuível à defesa suportar o risco desse erro; por outro lado, quanto mais se avança na persecução penal e mais invasiva, restritiva e severa se torna a medida ou decisão a ser adotada, menos tolerável é o risco de atingir um inocente e, portanto, é mais atribuível à acusação suportar o risco desse erro.

Como a pronúncia se situa na penúltima etapa (antes apenas da condenação) e se trata de medida consideravelmente danosa para o acusado, que será submetido a julgamento imotivado por jurados leigos, standard deve ser razoavelmente elevado e o risco de erro deve ser suportado mais pela acusação do que pela defesa, ainda que não se exija um juízo de total certeza para submeter o réu ao Tribunal do Júri.

Deve-se distinguir a dúvida que recai sobre a autoria, a qual, se existentes indícios suficientes contra o acusado, só será dirimida ao final pelos jurados, porque é deles a competência para o derradeiro juízo de fato da causa, da dúvida quanto à própria presença dos indícios suficientes de autoria (metadúvida, dúvida de segundo grau ou de segunda ordem), que deve ser resolvida em favor do réu pelo magistrado na fase de pronúncia.

Também na pronúncia, ainda que com contornos em certa medida distintos, tem aplicação o in dubio pro reo, pois, segundo a doutrina, "submeter a julgamento popular um acusado, mesmo quando há dúvidas da existência do crime ou de indícios suficientes de crimes, constitui uma temeridade. Isso porque não apenas se viola flagrantemente os direitos e as garantias constitucionais, como também porque aumenta a possibilidade de erros judiciais, tendo em vista que a condenação do acusado poderá ocorrer mesmo se os parâmetros probatórios necessários para a condenação não sejam atingidos".

À luz da efetividade e da utilidade do processo, é preciso, como regra, que toda decisão que implique o prosseguimento do feito em desfavor do imputado, com início de nova etapa processual, realize dois juízos: um diagnóstico (retrospectivo) sobre a suficiência do que se produziu até aquele momento; outro prognóstico sobre o que se projeta para a próxima etapa, a fim de verificar se será viável superá-la.

Na pronúncia, esse juízo prognóstico sobre a etapa vindoura (julgamento em plenário e condenação) seria ainda mais importante em virtude da ausência de fundamentação da decisão dos jurados; ou seja, considerando que, na etapa final do procedimento dos crimes dolosos contra a vida, o veredito é imotivado, adquire especial relevo o juízo prognóstico sobre a viabilidade da condenação. Isso esbarra, porém, em dois obstáculos impostos ao juiz togado: a) a impossibilidade de usurpar a competência constitucional dos jurados para o judicium causae e b) a necessidade de fundamentar de forma sucinta a decisão, sob pena de incorrer em excesso de linguagem, a teor do art. 413, § 1º, do CPP e influenciar negativamente os jurados contra o réu.

Assim, standard probatório para a decisão de pronúncia, quanto à autoria e à participação, situa-se entre o da simples preponderância de provas incriminatórias sobre as absolutórias (mera probabilidade ou hipótese acusatória mais provável que a defensiva), típico do recebimento da denúncia, e o da certeza além de qualquer dúvida razoável (BARD ou outro standard que se tenha por equivalente), necessário somente para a condenação. Exige-se para a pronúncia, portanto, elevada probabilidade de que o réu seja autor ou partícipe do delito a ele imputado.

(grifos nossos)

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Antes de argumentar sobre a decisão acima, importa colacionar o conceito de standard probatório, a fim de melhor compreender a profundidade hermenêutica da argumentação do STJ. Nessa linha, vale trazer a seguinte definição extraída do artigo publicado por Vinicius Gomes de Vasconcellos4:

Os standards de prova são “critérios que indicam quando se conseguiu a prova de um fato, ou seja, critérios que indicam quando está justificado aceitar como verdadeira a hipótese que descreve” (GASCÓN ABELLÁN, 2005, p. 129, tradução livre).18 Trata-se, portanto, de padrões que apontam uma demarcação, um mínimo probatório que deve ser superado para que se considere um fato como provado. Em termos diretos, eles definem “o ‘quanto de prova’ (nível de suficiência probatória ou grau de confirmação” (KIRCHER, 2018, p. 190).

(...)

Em uma análise ampla, os standards probatórios podem ser conceituados como “mecanismos para distribuição de erros” (LAUDAN, 2006, p. 68, tradução livre),19 pois, quanto maior for o rigor, ou seja, a quantidade/qualidade de provas necessárias para que se permita considerar um fato como provado, maior a tendência de que eventuais erros ocorram em casos de falsos negativos. Isso quer dizer que um standard mais rigoroso, como o “além da dúvida razoável”, ocasiona que exista uma segurança no sentido de que serão evitados ao máximo casos em que se considere como provados fatos que, em realidade, não ocorreram. Entre o erro de se declarar como provado um fato que não ocorreu ou não se aceitar o reconhecimento de algo que efetivamente tenha acontecido, opta-se por assentar que o sistema judicial deve se estruturar para evitar afirmar fatos falsos como verdadeiros.

Diante dos argumentos acima perfilados, depreende-se como correta a mudança interpretativa elaborada pelo STJ no julgado analisado, considerando que não se deve cogitar, à luz dos atuais princípios-normativos constitucionais, a submissão de uma pessoa para julgamento perante o Tribunal de Júri, órgão julgador cujos votos são desprovidos de fundamentação, o que, inegavelmente, limita o repertório de defesa do acusado. Ademais, fortalece-se, inclusive, o trabalho da polícia judiciária, a qual deverá entregar aos processos indícios e provas concretas e substanciais capazes de emitir juízos condenatórios municiados por standard de prova mais rigorosos, em decisões lastreadas pela certeza “além de qualquer dúvida razoável” (“beyond a reasonable doubt”, do direito anglo saxão).

O princípio do in dubio pro societate, no ordenamento jurídico brasileiro, pode estar com seus dias contados, pelo menos quanto às decisões de pronúncia nos crimes dolosos contra a vida. Contudo, ainda se espera uma decisão definitiva sobre o tema pelo Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição Federal.


  1. Aristotle, Problemata, Bk. XXIX (emphasis added); translated in E.S. Forster, The Works of Aristotle Vol. VII Problemata 951b (J.A. Smith and W.D. Ross eds., Clarendon Press 1927). Disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/375851/o-principio-in-dubio-pro-reo. Acesso em: 24/10/2023.

  2. AVENA, Norberto. Processo Penal Esquematizado. 3ª. Ed. Editora Método: São Paulo, 2011, pag. 51.

  3. Conforme decisões: STJ: AgRg no REsp 1.832.692/RS; AgRg no AREsp 1.390.818/RS. STF: ARE 1.250.182-AgR; ARE 986.566-AgR; ARE 873.294-AgR. Citado em: https://www.conjur.com.br/2021-jan-19/opiniao-aplicacao-in-dubio-pro-societate-pronuncia. Acesso em 24/10/2023.

  4. VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Standard probatório para condenação e dúvida razoável no processo penal: análise das possíveis contribuições ao ordenamento brasileiro. Revista Direito GV, v. 16, n. 2, maio/ago. 2020, e1961. doi: http://dx.doi.org/10.1590/2317- 6172201961. Disponível em: https://periodicos.fgv.br/revdireitogv/article/view/83261/79065 . Acesso em 24/10/2023

Sobre o autor
Régis Schneider da Silva

Atualmente, Assessor Jurídico - Especialista em Saúde - da Secretaria Estadual de Saúde do RS. Antigo analista processual da DPE/RS e analista de previdência e saúde do Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul - IPERGS. Especialista em Direito Penal e Processo Penal

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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