Mercado e risco empresarial

25/09/2023 às 09:34
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Medio tutissimus ibis -Ovídio

O presente ensaio apresentará algumas reflexões sobre o mercado e o risco empresarial, colocando em relevo o princípio constitucional da livre iniciativa [possibilidade de as pessoas se lançarem na vida econômica, empreendendo, constituindo pessoa jurídica, por conta e risco – teoria do risco da empresa], que se traduz em um dos pilares da ordem econômica prevista na Constituição Federal.

Por outro lado, se não pode esquecer que há a possibilidade de malogro, insucesso da empresa [exercício da atividade2 econômica organizada], que pode até implicar na abertura judicial da falência da pessoa jurídica, em caso mais extremo [crise patrimonial, insolvência] ou necessidade de se valer de um dos meios recuperatórios previstos na Lei 11.101/05, por exemplo.

Assim, todas as pessoas jurídicas regularmente constituídas [sociedades empresárias e empresários], que ingressam no mercado competitivo, por seus sócios ou acionistas, têm (ou deveriam ter) ciência inequívoca dos riscos inerentes à atividade mercantil exercida pelo agente econômico.

Ora, se de um lado há o direito constitucional de empreender [visando a obtenção de lucro, inerente à atividade empresarial no âmbito privado], por outro, há o risco mercantil, o imponderável risco mercantil.

O Estado incentiva o empreendedorismo, tanto que em 2019 foi editada a Lei 13.874, que dispõe sobre os direitos de liberdade econômica3. Destarte, que anela o exercício da atividade econômica, visa a constituição de sociedade empresária, há de estar cientes dos riscos (imponderáveis – a crise sanitária mundial pode ser citada como bom exemplo) inerentes a esta mesma atividade.

De acordo com Jair Gevaerd,

A eficiência e a lucratividade, portanto, são princípios que, conjugados com o princípio do risco, têm profundas e definitivas implicações no âmbito da aferição da licitude da atividade institucional e da conveniência da superação (ou não) de regimes ordinários de responsabilidade dos sócios quanto às dívidas sociais4

A crise empresarial (econômico-financeira ou mesmo patrimonial [inafastável – mais dívidas e menos ativos – que implica na retirada do agente do mercado, até para evitar efeito multiplicador desta crise, preservando-se a segurança, estabilidade e regularidade deste mercado]) momentânea, pode gerar consequências, em maior ou menor densidade.

Por isso, ao primeiro sinal de alerta, os incorporadores devem agir, visando afastamento de tal crise e mantença no mercado competitivo.

De início, um dos princípios fundamentais constantes da Constituição Federal é o do livre iniciativa, ao lado dos valores sociais do trabalho [art. 1º, inc. IV]. Por sua vez, a livre iniciativa está prevista no art. 170, caput, sem descuidar da livre concorrência [inc. IV] e da busca do pleno emprego [inc. VIII].

Há também o tratamento favorecido às empresas de pequeno porte, sendo que do parágrafo único consta: É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

O Estado exerce o papel de regulador da atividade econômica, bem como fiscaliza, incentiva [indicativo] o exercício desta ao setor privado [art. 174]5. O Estado regula/limita atividade econômica privada. Prepondera o interesse coletivo, para resguardar segurança nacional. Ainda, se não se descuide do monopólio estatal [art. 177].

A Constituição Federal tem como escopo a existência digna de todos e a justiça social, sem se descuidar da busca pelo desenvolvimento nacional e a valorização do trabalho humano. Destarte, livre iniciativa [direito de empreender e constituir pessoa jurídica] liga-se à valorização do trabalho humano, sem descuidar da livre concorrência, inerente ao mercado competitivo neoliberal.

Aliás, este mercado tem suas próprias regras e exige calculabilidade, segurança e previsibilidade6 dos atos praticados por aqueles que nele operam.

Em resumo, o princípio da livre iniciativa tem a ver com a liberdade de empreender no mercado competitivo, assumindo todos os riscos, bem como a valorização do trabalho humano. Eros Roberto Grau ensina que:

Importa deixar bem vincado que a ‘livre iniciativa’ é expressão de liberdade titulada não apenas pela empresa, mas também pelo trabalho. A Constituição, ao contemplar a ‘livre iniciativa’, a ela só opõe, ainda que não a exclua, a ‘iniciativa do Estado’; não a privilegia, assim, como bem pertinente apenas à empresa7

Assevera a doutrina:

O Estado, com efeito, incentiva o empreendedor a ingressar no mercado competitivo. Sabe-se que de um lado há o princípio constitucional da livre iniciativa, e de outro lado existe a teoria do risco, consentâneo e inerente à atividade empresarial. O empreendedor tem ciência inequívoca que, de fato, existe sempre o risco (previsível) de o negócio não vingar e ser necessária a retirada da empresa do mercado, pela forma compulsória ou espontânea (leia-se: autofalência ou falência), ou mesmo requeira judicialmente o amparo estatal, via processo de recuperação. A liberdade da iniciativa, constante da Constituição Federal, nada mais é do que um princípio expresso do liberalismo econômico, mas aqui não cabe dissecar a respeito das relações de produção, do absolutismo da propriedade e muito menos da privada regulação, sem a participação estatal8

Jair Gevaerd ensina que:

Segundo, pois, a teoria ou princípio do risco mercantil societário, concede-se aos incorporadores – sob regime originariamente ilimitado ou não – o benefício da dúvida quanto à (i) suficiência, (ii) efetividade e (iii) materialidade dos aportes patrimoniais devidos à instituição. Onera-se-os, entretanto – e como não poderia deixar de ser – com os riscos inerentes à viciosa ou imperfeita avaliação, o que, pela generalidade das hipóteses e imprevisibilidade das consequências, abrange virtualmente todas as possiblidades de patologias societárias, relativamente ao aporte (por exemplo, fraude, dolo, erro, simulação, imperícia, imprudência, negligência etc.).

Ademais, a consideração do princípio do risco mercantil societário, combinado com o princípio da suficiência do patrimônio incorporado, implica notável balanceamento de momentos contrapostos (mas, não obstante, harmônicos), da disciplina principiológica. Confira-se:

  1. Em movimento diafragmático de relaxamento, atua o princípio da suficiência do patrimônio incorporado. Segundo ele não se questiona, neste momento, se os instituidores incorporaram – ou não – meios patrimoniais material e efetivamente suficientes para a persecução do objeto social. Homenageia-se a boa-fé, a confiança e a liberdade de iniciativa.

[...]

  1. Em movimento diafragmático de tensão, atua o princípio do risco mercantil societário. Segundo ele – e independentemente da presunção de suficiência explicitada sob ‘a’, ‘supra’ – não se pode exonerar a incorporador (ilimitado ou não) dos riscos inerentes à atividade mercantil 9

Marlon Tomazette enfatiza:

O empresário, por sua vez, assume o risco total da empresa. Não há uma prévia definição dos riscos, eles são incertos ilimitados. Ademais, o risco da atividade não é garantido por ninguém. Se houver uma crise no ramo de atuação do empresário, e este tiver prejuízo pela falta de demanda, ele não terá a quem recorrer. A remuneração do empresário está sujeita a elementos imponderáveis que pode fugir das previsões deste e, nessa situação, o risco é dele, não há a quem recorrer10

Discorrendo acerca do princípio da suficiência patrimonial, Jair Gevaerd assim se posiciona:

Se a instituição visa, em regra, à permanência – na exata medida em que o objeto social não se compadece de perseguição limitada no tempo – os meios patrimoniais que a suportam (e que possibilitam, precisamente, o atingimento do fim social) não podem estar ao alcance do irresponsável desfrute, seja dos sócios, seja de terceiros11

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Importante destacar o pensamento esposado por Eros Roberto Grau quanto ao papel do Estado na economia:

paradoxalmente, foi sempre o Estado que, entre nós, promoveu, suportando o seu custo, inovações empresariais. Neste sentido, o Estado brasileiro caracterizou-se como ‘schumpeteriano’. Basta lembrarmos, aqui, os movimentos de criação de empresas estatais no governo Getúlio (década de 40 do século passado) e durante a ditadura militar (segunda metade da década de 60), além do desenvolvimento do governo Juscelino Kubitschek e do papel do BNDES e de outras agências e sociedades governamentais, como a EMBRAPA12

No que se refere ao mercado competitivo, do qual participa o agente econômico, Max Weber assevera:

Falamos de mercado quando pelo menos por um lado há uma pluralidade de interessados que competem por oportunidades de troca. Quando estes se reúnem em determinado lugar, no mercado local, no comercio a grande distância (anual, feira) ou no de comerciantes (bolsa), temos apenas a forma mais consequente da constituição de um mercado, sendo esta, no entanto, a única que possibilita o pleno desdobramento do fenômeno específico do mercado: o regateio13

Em resumo, a Constituição Federal erigiu como princípio a livre iniciativa, sendo que, todos os que visam a empreender, ingressando no mercado competitivo [livre concorrência], hão de estar cientes dos riscos, imponderáveis, [para tanto, há de se colocar em prática o princípio da suficiência de ativos].

O lucro é inerente ao exercício da atividade econômica privada, mas os incorporadores devem ter em mente a necessidade de observância do princípio da preservação da empresa [mantença no mercado], sua função social e valorização do trabalho humano.

Eram essas as breves considerações a respeito do tema.


  1. .

  2. Ensina Tullio Ascarelli que atividade não significa ato, a não ser uma série de atos coordenáveis entre si para uma finalidade comum (e o término ‘ato’, mais que em seu alcance jurídico técnico, deve ser a este respeito, entendido, ao menos para as pessoas físicas, como equivalente de ‘negócio’, a sua vez resultante de um ou vários atos jurídicos porque para as pessoas físicas, é uma pluralidade de ‘negócios’, e não puramente ‘atos’, a que pode apresentar-se como coordenada, formando assim uma ‘atividade’. Iniciação ao estudo do direito mercantil. Sorocaba: Editora Minelli, 2007, p. 179. Destaques na obra.

  3. Observem-se as disposições constantes do artigo 3º, por exemplo.

  4. Direito societário: teoria e prática da função. Curitiba: Genesis, 2001, p. 306.

  5. Sobre o tema: CLARO, Carlos R. Estado regulador e atividade empresarial na sociedade pós-moderna. In – Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul, n. 64, out. 2009 – dez 2009. Porto Alegre: AMP/RS, 2010.

  6. Na visão de Nicholas Gregory Mankiw, o mercado é um grupo de compradores e vendedores de um determinado bem ou serviço. Os compradores, como grupo, determinam a demanda pelo produto e os vendedores, também como grupo, determinam a oferta do produto. Introdução à economia. São Paulo: Cengage Learning, 2012, p. 66. Quanto ao mercado: GRAU, Eros R. Por que tenho medo dos juízes: (a intepretação/aplicação do direito e os princípios). 7ª edição. São Paulo: Malheiros, 2016.

  7. A ordem econômica na Constituição de 1988. 11ª edição revisada e atualizada. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 206. Destaques no original.

  8. CLARO, Carlos R. Op. cit., p. 149. Prossegue o autor: a liberdade de exercer atividade esbarra inexoravelmente em princípios valiosos e fundamentais, sendo que essa liberdade nada mais é do que a ‘sensibilidade’ e a ‘acessibilidade a alternativas de conduta e de resultado’, no dizer do já citado Eros Grau. Op. cit., p. 149. Grifos no original.

  9. Op. cit., pp. 440-441. Destaques na obra.

  10. Curso de direito empresaria, volume 3: falência e recuperação de empresas. 4ª edição. São Paulo: Atlas, 2016, p. 16.

  11. Op. cit., p. 325.

  12. Op., cit., p. 47. Conforme texto original.

  13. Economia e Sociedade. 1º Volume. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2009, p. 419. Prossegue: Chamamos racionalidade ‘formal’ de uma gestão econômica o grau de ‘cálculo’ tecnicamente possível que ela aplica. Ao contrário, chamamos racionalidade ‘material’ o grau em que o abastecimento de bens de determinados ‘grupos’ de pessoas (como quer que se definam), mediante ação social economicamente orientada, ocorra conforme determinados ‘postulados valorativos (qualquer que seja sua natureza)’ que constituem o ponto de referência pelo qual este abastecimento é, foi ou poderia ser julgado. Op. cit., p. 52. Grifos na obra. Acentua Eros Roberto Grau: O chamado ‘direito moderno’ é racional, na medida em que permite a instalação de um horizonte de ‘previsibilidade’ e ‘calculabilidade’ em relação aos comportamentos humanos – vale dizer: ‘segurança’. Cotidianamente trocamos nossa insegurança por submissão ao poder. Por que tenho medo dos juízes: (a intepretação/aplicação do direito e os princípios). 7ª edição. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 15. Destaques na obra. Pondera o mesmo autor: o mercado é instituição jurídica constituída pelo ‘direito positivo’. É expressão de um projeto político – como ‘princípio de organização social’ – e atividade. O Estado deve ‘garantir a liberdade econômica’ e, concomitantemente, ‘operar a sua regulamentação’. Op. cit., p. 17. Destaques no original. Ainda sobre o mercado: GRAU, Eros R. A ordem econômica na Constituição de 1988. 11ª edição revisada e atualizada. São Paulo: Malheiros Editores, 2006. O jurista Jair Gevaerd bem pondera: Sem dúvida, o mercado manifesta mecanismos de defesa. Mediante eficiente sistema de circulação de informações, hoje com a cooperação de empresas especializadas em análise de desempenho e perfil de agentes econômicos, a coletividade de interessados em determinados ramos mantém constante troca de relevantes dados sobre a solvabilidade de clientes, concorrentes e parceiros mercantis. Op. cit., p. 546. O mercado competitivo - no qual há muitos compradores e vendedores que negociam produtos - tem estreita ligação com a economia de caráter neoliberal. Euro Brandão, em sua obra, esclarece que vive-se a síndrome do economicismo, ou seja, a crença de que tudo gira em torno do econômico. TER passou a ser mais importante que SER. O desejo de posse obnubilou a mente humana. Para ter mais poder econômico, pessoas, empresas, instituições, nações passaram a destruir o que se lhe antepusesse às suas aspirações materiais. A valorização humana na empresa. Curitiba: Champagnat, 1995, p. 9. Para este autor, há preocupação excessiva com o aspecto econômico e foram geradas ideologias em que apenas o ângulo econômico do homem é considerado. Temos aí o marxismo e o capitalismo selvagem para evidenciar isso. Op. cit., p. 12. Para este autor, há preocupação excessiva com o aspecto econômico e foram geradas ideologias em que apenas o ângulo econômico do homem é considerado. Temos aí o marxismo e o capitalismo selvagem para evidenciar isso. Op. cit., p. 12.

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Sobre o autor
Carlos Roberto Claro

Advogado em Direito Empresarial desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; Professor em Pós-Graduação; Parecerista; Pesquisador; Autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.

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