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A “pendura” e o Direito Penal

11/08/2020 às 19:21
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O Tribunal de Justiça de São Paulo julgou que estudantes de direito que fizeram "pendura" em um restaurante não cometeram crime de estelionato.

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Quinta Câmara Seção Criminal

Habeas Corpus nº 1.003.154-3/7-00

Comarca: São Caetano do Sul

Impetrante: Dr. Mário Rui Aidar Franco

Paciente: LMO

Voto nº 7799

As atribuições do Ministério Público, bem compreendidas, são as mais belas que existem

(De Molénes; apud J.B. Cordeiro Guerra, A Arte de Acusar, 1a. ed., p. 99).


Segundo a comum opinião dos doutores e a jurisprudência de nossos Tribunais, não comete crime de estelionato o acadêmico de Direito que, por festejar a data comemorativa da instituição dos cursos jurídicos no País 11 de agosto , pratica a denominada pendura, isto é: dirige-se a uma casa de pasto e, após comer à tripa forra e entrar galhardamente pelas bebidas, chama a seu pé o dono do estabelecimento e comunica-lhe, em discurso de pompa e circunstância, que aquele troço de estudantes quer homenageá-lo como a amigo e benfeitor da velha e gloriosa Academia de Direito do Largo de São Francisco, além de significar-lhe eterna gratidão pelo oferecimento do memorável banquete.

Em escólio ao art. 176 do Código Penal escreveu Damásio E. de Jesus: Entendeuse haver mero ilícito civil e não penal, uma vez que o tipo exige que o sujeito não possua recursos para o pagamento dos serviços (Código Penal Anotado, 17a. ed., p. 674).

Dispõe o art. 659 do Cód. Proc. Penal que, se o Tribunal verificar ter já cessado a violência ou coação ilegal de que se queixa o paciente, lhe julgará prejudicado o pedido de habeas corpus.

Julga-se o habeas corpus prejudicado quando o impetrante obtém, durante a ação, a situação jurídica reclamada

(STJ; HC nº 1.623/2; 6a. T.; rel. Min. Vicente Cernicchiaro; j. 18.12.96).


1. O ilustre advogado Dr. Mário Rui Aidar Franco impetra a este Egrégio Tribunal ordem de Habeas Corpus em favor de LMO, sob a alegação de que padece constrangimento ilegítimo da parte do MM. Juízo de Direito da 2a. Vara Criminal da Comarca de São Caetano do Sul.

Alega, em esmerada petição, que o paciente está a sofrer coação ilegal por falta de justa causa para a persecução penal que lhe foi instaurada perante aquele douto Juízo, por infração do art. 176 do Código Penal (tomar refeição em restaurante sem dispor de recurso para efetuar o pagamento).

Foi o caso que afirma o digno impetrante o paciente, acadêmico de Direito da Universidade do Grande ABC (UniABC), e mais onze colegas, no dia 11 de agosto deste ano, dirigiram-se à Churrascaria Vivano Grill Ltda., situada na Av. Goiás, em São Caetano do Sul, com o intuito de comemorar, com a tradicional pendura, o aniversário da criação dos cursos jurídicos no Brasil.

Assim, após consumir comida e enfrascar-se em bebidas, o paciente levantou-se e leu um discurso, no qual dava a conhecer ao gerente da casa de pasto que não iriam pagar a conta, que ficaria pendurada em obséquio ao onze de agosto, data caríssima aos estudantes de Direito.

O gerente da churrascaria, no entanto, infenso à arenga acadêmica, exigiu que os estudantes ocorressem às despesas, do contrário solicitaria o concurso da Polícia Militar.

Da turma, oito satisfizeram ao pagamento; o paciente e mais três colegas, contudo, esses recalcitraram: nada pagariam. Pelo que, policiais militares, chamados a intervir na pendência, deram-lhes voz de prisão e conduziram-nos à Delegacia de Polícia de São Caetano do Sul, onde a autoridade de plantão os mandou autuar em flagrante pelo crime de estelionato (art. 171, caput, do Cód. Penal).

A instâncias da Defesa que lhe pleiteou o relaxamento da prisão por vício de formalidade (i.e., falta de comunicação da prisão ao MM. Juiz de Direito do Plantão Judiciário), foi solto o paciente mediante concessão de liberdade provisória.

Requer agora o paciente, assistido de distinto advogado, o trancamento do inquérito policial, sob color de que o fato que lhe foi imputado carecia de tipicidade penal; por isso, era força pôr termo à persecutio criminis in judicio e mandá-lo em paz, em ordem a que não se lhe comprometesse o futuro, com o registro de crime em sua biografia social.

Em abono de sua pretensão, invocou a lição da Doutrina (Paulo José da Costa Júnior, Código Penal Anotado, p. 711) e a jurisprudência dos Tribunais (TACrimSP; HC nº 382.840/2; 6a. Câm.; rel. Almeida Sampaio; DOE 11.5.2001).

O pedido acompanha-se de numerosas cópias de peças dos autos de inquérito policial (fls. 14/32).

O despacho de fls. 34/39 denegou a medida liminar pleiteada.

A mui digna autoridade judiciária indicada como coatora prestou as informações de estilo (fls. 62/63), nas quais esclareceu que os autos aguardavam manifestação da vítima quanto ao interesse em representar criminalmente contra o paciente.

A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em arguto e objetivo parecer do Dr. Arnaldo Gonçalves, opina pelo não-conhecimento do pedido, pela perda de seu objeto (fls. 99/101).

É o relatório.


2. O alvo a que atira a impetração é obter desta augusta Corte de Justiça ordem de habeas corpus para o trancamento do inquérito policial instaurado contra o paciente.

O objeto da impetração, no entanto, já decaiu de momento e interesse.

De feito, é força considerar prejudicado o pedido de habeas corpus, uma vez que e bem o observou o douto parecer da Procuradoria-Geral de Justiça (fl. 100) os autos foram arquivados, nos termos do parecer ministerial (fl. 105).

A razão foi que, tratando-se de ação pública condicionada (art. 176, parág. único, do Cód. Penal), era de preceito a representação da vítima, ônus de que todavia se não desempenhou, embora intimada regularmente (fl. 103).

A essa conta, perdeu seu objeto a impetração, pois desapareceu a causa petendi (alegado constrangimento ilegal).

Faz ao caso a lição de Julio Fabbrini Mirabete:

Verificando, em especial pelas informações, que já cessou a violência ou a coação, como por exemplo, a prolação da sentença condenatória ou a soltura do réu em caso de excesso de prazo na instrução criminal, o juiz ou o Tribunal declaram que o pedido está prejudicado. Deixou de existir legítimo interesse no remédio heroico e o impetrante é, agora, carecedor da ação

(Código de Processo Penal Interpretado, 7a. ed., p. 1.476).

Isto mesmo têm proclamado nossos Tribunais, como o persuade o ven. aresto abaixo reproduzido por sua ementa:

Julga-se o habeas corpus prejudicado quando o impetrante obtém, durante a ação, a situação jurídica reclamada

(STJ; HC nº 1.623/2; 6a. T; rel. Min. Vicente Cernicchiaro; j. 18.12.96).

Assim, nos termos do art. 659 do Código de Processo Penal, tenho por prejudicada a impetração.


3. No entanto, leve-se à paciência externe ligeiras observações a propósito deste feito.

É a primeira a agradável impressão que nos infundem no ânimo as boas ações e iniciativas louváveis.

Tenho uma delas entre mãos: a diligênciaque tomou sobre si o digno e culto subscritor do parecer da Procuradoria-Geral de Justiça (Dr. Luiz Carlos Ormeleze), em ordem a obter, sponte sua, documentos relacionados com o estágio da presente causa-crime.

Atos desse jaez, próprios somente dos espíritos esclarecidos e cônscios da muita importância de suas funções, confirmam-me a veracidade do conceito de De Molénes, citado pelo saudoso Ministro Cordeiro Guerra, do Supremo Tribunal Federal: As atribuições do Ministério Público, bem compreendidas, são as mais belas que existem (A Arte de Acusar, 1a. ed., p. 99).

Este registro, com menção expressa do nome de distinto Procurador de Justiça, faço-o como preito de admiração e justa homenagem aos preclaros membros dessa nobre Instituição, quando se comemora o Dia do Ministério Público: 13 de fevereiro.


4. A dar-se o caso que não interrompesse o curso da persecução penal o despacho de fl. 105, que mandou arquivar o inquérito policial por falta de condição para o exercício do jus persequendi in judicio: representação do ofendido , a espécie dos autos não incorria na censura do Direito.

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Deveras, segundo a comum opinião dos doutores e a jurisprudência de nossos Tribunais, não comete crime de estelionato o acadêmico de Direito que, por festejar a data comemorativa da instituição dos cursos jurídicos no País 11 de agosto , pratica a denominada pendura, isto é: dirige-se a uma casa de pasto e, após comer à tripa forra e entrar galhardamente pelas bebidas, chama a seu pé o dono do estabelecimento e comunica-lhe, em discurso de pompa e circunstância, que aquele troço de estudantes o quer homenager como a amigo e benfeitor da velha e gloriosa Academia de Direito, além de significar-lhe eterna gratidão pelo oferecimento do memorável banquete (a que soem, então, chamar supino ágape ou simpósio opíparo); ato contínuo, rompem em fuga, a sete pés, pela porta de saída, onde já os espera a Polícia!

Ao paciente o inquérito policial imputou o crime de estelionato (art. 171 do Cód. Penal), visto que se recusara a pagar o preço da consumação de produtos numa churrascaria, mesmo tendo recursos disponíveis (fl. 15).

Em escólio ao art. 176 do Código Penal escreveu Damásio E. de Jesus:

Entendeu-se haver mero ilícito civil e não penal, uma vez que o tipo exige que o sujeito não possua recursos para o pagamento dos serviços

(Código Penal Anotado, 17a. ed., p. 674).

Pelo mesmo teor, Guilherme de Souza Nucci, em sua apreciada obra:

Pendura: por força da tradição, acadêmicos de direito costumam, como forma de comemorar a instalação dos cursos jurídicos no Brasil (11 de agosto), dar penduras em restaurantes, tomando refeições sem efetuar o devido pagamento. Tem entendido a jurisprudência, neste caso, não estar configurada a hipótese do art. 176, pois, na sua grande maioria, são pessoas que têm dinheiro para quitar a conta, embora não queiram fazê-lo, alegando tradição. Tratar-se-ia, pois, de um ilícito meramente civil

(Código Penal Comentado, 5a. ed., p. 706).

Professa a mesma inteligência o renomado penalista Paulo José da Costa Júnior:

Condição indispensável à configuração do crime é não dispor de recursos para solver a obrigação. Desse modo, o estudante de direito que vier a dar o pendura , no dia 11 de agosto, data da fundação dos cursos jurídicos no Brasil, se dispuser de numerário suficiente, surpreendido em flagrante e levado à polícia, não estará praticando crime algum, nem em sua forma tentada. O crime não se realizou, porque ausente um pressuposto: a falta de recursos para efetuar o pagamento. A ausência do ilícito penal não elimina o civil, restando ao estudante a obrigação de pagar a consumação

(Código Penal Anotado, p. 711).

Passa o mesmo na esfera pretoriana:

Percebe-se com nitidez que os recorrentes foram unicamente movidos pelo animus jocandi. Não houve dolo, consistente na consciência e vontade de praticar a ação sabendo que não dispunham de recursos para efetuar o pagamento. Não houve fraude, no sentido de ludibriar o comerciante, gerando nele a crença de uma situação financeira diversa da real. Simplesmente quiseram brincar, seguindo secular tradição dos estudantes do Largo de São Francisco, e não causar prejuízo a terceiro em proveito próprio. Brincadeira, sem dúvida reprovável, verdadeiro calote, que causou prejuízo ao comerciante. Dano porém, reparável, através de competente ação civil, aliás já proposta pela vítima

(TACrimSP; RHC nº 426.297-9/São Paulo; rel. Gonzaga Franceschini; j. 14.4.86; v.u).

Assim, mesmo que não tivesse o MM. Juiz de Direito determinado o arquivamento, por falta de condição de procedibilidade, dos autos de inquérito policial, decerto não triunfava, por atípica, a imputação formulada contra o paciente, que estava a comemorar, com expansão de jovialidade e segundo a tradição ininterrupta das Arcadas, o dia mais risonho das efemérides acadêmicas: o 11 de agosto.


5. Pelo exposto, considero prejudicado o pedido de habeas corpus.

São Paulo, 13 de fevereiro de 2007

Des. Carlos Biasotti

Relator

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Sobre o autor
Carlos Biasotti

Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

Informações sobre o texto

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