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Artigo Destaque dos editores

Como os advogados marcaram a Música Popular Brasileira

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6. Olha a formação do José Roberto Kelly

Um advogado e as marchinhas de carnaval

José Roberto Kelly, nascido em 1938, é mais um compositor que se formou bacharel em Direito pela UFRJ. Autor de marchinhas cantadas no Carnaval carioca há muitos anos, entre canções de outros gêneros, há um livro seu de memórias, "Cabeleira do Zezé e outras histórias", e muitos álbuns com suas obras, em uma discografia vasta. Contudo, se destaca que é autor de marchinhas como “Cabeleira do Zezé”, “Mulata Bossa Nova", “Bota a Camisinha” e “Maria Sapatão”, que as gerações de cariocas mais velhos já cantaram em outros carnavais, e que hoje em dia sofrem uma espécie de "cancelamento" já abordado pelo autor em entrevistas3 a jornais.


7. Coração de estudante de Direito

A presença de um advogado no Clube da Esquina

Mesmo no Clube da Esquina, não podemos esquecer de Fernando Brant. Nascido em 1946 e falecido em 2015, teve parcerias com Milton Nascimento, Lô Borges, Wagner Tiso, Márcio Borges, Nivaldo Ornelas, Toninho Horta e Paulo Braga. Brant compôs, entre outras canções, "Travessia", "Nos Bailes da Vida", "Para Lennon e McCartney" e "Coração de Estudante". Era formado em Direito pela UFMG, tendo colado grau em 1970. Em sua homenagem, há o álbum "O Vendedor de Sonhos". E sobre o Clube da Esquina, o livro "Os Sonhos não envelhecem", do Márcio Borges.


8. Eu te proponho nos entregarmos

Emílio Santiago, Luiz Ayrão, Carlos Colla e outros contornos vocais e poéticos na MPB

Também nascido em 1946, mas falecido em 2013, outro advogado de atuação destacada na MPB foi Emílio Santiago, que foi mais um egresso da atual Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, que tem hegemonia absoluta entre os advogados que se voltaram para a MPB. Foi em um festival da faculdade que Emílio Santiago despertou para o canto, vindo a participar de programas de auditório na TV e a se tornar crooner de orquestra.

Santiago lançou seu primeiro álbum em 1973 e a partir de então passou a se dedicar à música, se tornando um grande "vendedor de discos" já no final da década de 1980, quando lançou diversos álbuns com músicas que foram grande sucesso comercial, embora seus trabalhos sempre tenham tido elogios da crítica especializada, especialmente por sua técnica apurada como cantor barítono de timbre considerado especial. De todos os bacharéis em Direito, talvez tenha sido o único que se destacou como intérprete em vez de como compositor. Infelizmente ainda não se escreveu livro com biografia a seu respeito, mas seus álbuns seguem sendo meio pelo qual é possível conhecer seu trabalho, que também mereceria uma discobiografia.

E se a Jovem Guarda ainda não apareceu aqui, dois compositores gravados por Roberto Carlos foram também advogados: é o caso de Luiz Ayrão, que também foi ícone tanto da Jovem Guarda quanto do Samba (chegando a ser gravado até pelo sertanejo Daniel, que gravou a sua "Os Amantes", além de ser inclusive associado à chamada "música brega", com suas mais de 500 composições), e do discretíssimo Carlos Colla, autor de mais de 2 mil músicas gravadas.

Luiz Ayrão nasceu em 1942, é autor de "Nossa Canção", gravada em 1966 por Roberto Carlos. Formado em Direito, foi procurador do Banco do Estado da Guanabara. Compôs músicas gravadas por outros nomes da Jovem Guarda, como o Renato e Seus Blue Caps e Golden Boys. Fez sucesso cantando, de sua autoria, "Porta Aberta", em homenagem à Portela e passou a gravar álbuns com seus sambas. Gravou diversos álbuns e escreveu alguns livros, inclusive um de memórias, “Da Aurora ao Por-do-Sol”.

Como discute Paulo Cesar Araújo no livro “Eu não sou cachorro não: música popular cafona e ditadura militar”, na música de grande apelo popular de Luiz Ayrão, encontramos uma resistência à ditadura militar, por exemplo, na sua clássica “Treze Anos (o Divórcio)”, em que Ayrão tanto tratou do tema moral controverso do divórcio, que estava sendo legalizado no Brasil naquele momento, quanto dos 13 anos de ditadura militar que vínhamos sofrendo.

Carlos Colla, nascido em 1944 e falecido em 2023, foi o compositor do estrondoso sucesso de Roberto Carlos “Falando Sério”, de 1977, já gravada por diversos outros artistas, três anos depois de se graduar em Direito, em 1974, tendo exercido a advocacia em sua vida profissional, conciliando com a música, até abandonar a advocacia após o atentado à OAB, onde trabalhava, em 1980.

Colla foi um compositor que teve muito sucesso junto ao público4, com músicas como "Sonho por Sonho" gravada pelos sertanejos Leandro & Leonardo, "Meu vício é você" e "Delírios de amor", gravadas por Alcione, "Solidão" gravada por Sandra de Sá, "Taras e manias", gravada por Elymar Santos, entre outras canções, incluindo as versões em português dos Menudos, na década de 1980, e sucessos da música gospel. Infelizmente ainda não há biografia a seu respeito, mas lançou dois álbuns autorais na década de 1990 e um DVD em 2009, quando comemorou 50 anos de carreira.


9. Tu não vens atuar nos tribunais

Do frevo de Capiba a Jorge Mello e Alceu Valença na música nordestina da década de 1970

Desde Capiba, nascido em 1904 e falecido em 1997, grande nome do frevo pernambucano, há no Nordeste uma ligação entre bacharéis em Direito e a MPB. Capiba cursou Direito na atual UFPE, na Faculdade de Direito do Recife, concluindo o curso em 1938, sem exercer a advocacia. Teve muito sucesso com a valsa "Maria Betânia" em 1950, gravada por Nelson Gonçalves, e também com mais de 100 frevos. Há o livro “Capiba é frevo meu bem”, de Renato Phaelante da Câmara e Aldo Paes Barreto, e álbuns em sua homenagem, como “Mestre Capiba” de Raphael Rabello.

Já no inicio da década de 1970, um piauiense, Jorge Mello, veio junto com o Pessoal do Ceará para o Rio de Janeiro. Nascido em 1948, gravando um compacto em 1972 e seu primeiro álbum em 1976, “Besta Fera” (muito elogiado pela crítica), entre outros que se seguiriam, que frequentemente trouxeram parcerias com seu grande amigo Belchior. Ainda hoje, atua na advocacia na área de direitos autorais.

Mas foi Alceu Valença o bacharel em Direito nordestino que mais sucesso encontrou junto ao público a partir da década de 1970. Nascido em 1946, em Pernambuco, formou-se em Direito e chegou a estudar em Harvard, abandonando qualquer intenção de seguir carreira jurídica, como aquela que seguiu seu pai, procurador, para se dedicar à música.

Lançou álbuns de qualidade excepcional e, a partir do final da década de 1970, se tornou um dos maiores “vendedores de discos” do país, com muitos sucessos junto ao público, como “Morena Tropicana”, “Coração Bobo”, “Anunciação”, sempre em álbuns caprichadíssimos e de indiscutível sofisticação poética, melódica e temática, em uma linha surrealista em muitas de suas canções.

Quando a indústria fonográfica mudou no país, passou a percorrer estradas e a fazer inúmeras apresentações pelas cidades brasileiras, depois passando a participar do projeto “O Grande Encontro” ao lado de Zé Ramalho, Elba Ramalho e Geraldo Azevedo, bem como outros projetos mais recentes, como suas produções ao lado da Orquestra Ouro Preto ou os álbuns em voz e violão gravados durante a pandemia, com seu belíssimo cancioneiro revisitado. Sobre sua vida e obra, há a biografia “Pelas ruas que andei”, de Julio Moura, e cada um de seus álbuns merece ser ouvido, sendo difícil destacar um deles, embora o recente “Sem Pensar no Amanhã” possa ser uma sugestão, assim como o documentário disponível nas plataformas de streaming, “Na embolada do tempo”, produzido por Roberto Berliner e Rodrigo Letier.


10. Compondo para Adoniran

Hervé Cordovil, um advogado marcando o samba de São Paulo

Chegamos ao final de nosso artigo, essa verdadeira viagem não só por ideias, mas por épocas, regiões e estados brasileiros, gêneros musicais e, especialmente, biografias.

Nossa última menção é a Hervé Cordovil, que compôs sambas inclusive para Adoniran Barbosa, nome que, ao lado de Paulo Vanzolini, marca o samba de São Paulo, apesar da invisibilidade de sambistas paulistas como Geraldo Filme, Toniquinho Batuqueiro e Zeca da Casa Verde. Para Adoniran, Cordovil fez “Guenta a mão, João” e “Prova de Carinho”, embora já fosse compositor experiente, como demonstra “Triste Cuíca” composta anos antes.

Bacharel em Direito em 1936 pela Faculdade de Direito de Niterói, atualmente Faculdade de Direito da UFF, Cordovil nasceu em 1914 e faleceu em 1979, havendo uma biografia escrita por Maria Carmo Passiago sobre ele, “Hervê Cordovil - Um Gênio da Música Popular Brasileira”, além de um CD com sua entrevista à TV Cultura, na série “MPB por seus autores e intérpretes” e trabalhos em sua homenagem, como “Hervé Cordovil interpretado por Camélia Alves”.

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Conclusão

Não encontrei juristas na Tropicália, no Rock brasileiro da década de 1980, no Pagode das décadas de 1980 e 1990 e nem na MPB da década de 1990. Mas a força da contribuição dada pelos advogados em movimentos anteriores da Música Popular Brasileira permite concluirmos o quanto "os advogados marcaram a MPB", ou melhor, o quanto contribuíram com sua riqueza!

Futuramente, eu adoraria estudar o que podem ser consideradas influências do campo jurídico na obra desses artistas, que tenham alcançado suas perspectivas de mundo através das formações em Direito que tiveram, traduzida nas opiniões dadas em entrevistas como artistas ou nas letras de suas canções, e de que forma essas formações podem ter contribuído para sua decisão pela arte. Uma hipótese possível é que o humanismo da FND da UFRJ possa ter marcado muitos de seus egressos que seguiram para a música e a literatura, por exemplo. Mas só uma pesquisa mais profunda poderá afirmar tal correlação.

O fato é que um país com tradição musical como o nosso, e tradição bacharelesca (apesar de a desigualdade social ter impedido o acesso de tantos segmentos da sociedade aos bacharelados tão valorizados ou mesmo à escola básica, muitas vezes havendo gênios em nosso país com pouca ou nenhuma escolarização, alguns deles dedicados à música), não iria a música passar incólume à presença de tantos bacharéis, tendo de haver aqueles a que alcançaria. E não poderiam ficar, tais bacharéis, distantes da música que é expressão tão profunda de nosso povo, tendo aqueles que se deixariam envolver por atividades profissionais no campo musical, marcando a nossa MPB.


Notas

1 https://vejario.abril.com.br/coluna/beira-mar/advogado-prepara-livros-pop-sobre-o-direito

2 Como a matéria de Fábio Grellet, “Procurador é maior autor de sambas-enredo no Rio: Baeta Neves, o Didi, morto em 1987 aos 52 anos, levou 24 músicas à avenida - Autor de clássicos como ‘É Hoje’ e ‘O Amanhã’ chegou a brigar com a mãe, que discordava de seu envolvimento com o samba”. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff3101201016.htm e “Um herói, uma canção, um poeta”, de Fred Soares, em https://medium.com/fredsoares/um-her%C3%B3i-uma-can%C3%A7%C3%A3º-um-poeta-77c89d8edd17

3 https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/cinema/noticia/2020/02/autor-de-cabeleira-do-zeze-e-maria-sapatao-fala-sobre-censura-e-origem-de-suas-musicas-ck6w9kaqk0ix401mvafqpho75.html

4 https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2023/01/13/morre-compositor-carlos-colla-autor-de-sucessos-em-vozes-consagradas-da-mpb.ghtml

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Sobre o autor
Carlos Eduardo Oliva de Carvalho Rêgo

Advogado (OAB 254.318/RJ). Doutor e mestre em Ciência Política (UFF), especialista em ensino de Sociologia (CPII) e em Direito Público Constitucional, Administrativo e Tributário (FF/PR), bacharel em Direito (UERJ), bacharel e licenciado em Ciências Sociais (UFRJ), é professor de Sociologia da carreira EBTT do Ministério da Educação, pesquisador e líder do LAEDH - Laboratório de Educação em Direitos Humanos do Colégio Pedro II.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RÊGO, Carlos Eduardo Oliva Carvalho. Como os advogados marcaram a Música Popular Brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7347, 13 ago. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/105550. Acesso em: 18 mai. 2024.

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