Ação de recuperação judicial e indeferimento da petição inicial

11/05/2023 às 16:09
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Carlos Roberto Claro1

Para fins de delimitação do objeto, o presente escrito tratará da petição inicial da ação constitutiva positiva2 3de recuperação judicial, bem como analisa até que momento processual que poderá haver o seu indeferimento, a teor da regra do art. 330 do Código de Processo Civil. Reputa-se relevante o tema, considerando a segurança jurídica [certeza e previsibilidade quanto as fases procedimentais] que há permear o regime recuperatório judicial e os efeitos jurídicos, econômicos, financeiros e sociais que advém da decisão proferida com base no art. 52 da lei4.

Imprescindível, pois, redobrada cautelar quando da análise da petição inicial, voltando-se as lentes mais especificamente ao efetivo cumprimento dos requisitos elencados no art. 51 da Lei 11.101/055, por parte do devedor.

Para distribuição da ação de recuperação judicial, o autor – devedor em crise - há de observar requisitos genéricos e específicos, além dos enunciados contidos na Lei 11.101/05, aqueles previstos no Código de Processo Civil, aplicável de forma subsidiária6. No que diz com os genéricos, cabe observância dos artigos 319 e 320 do Código de Processo Civil. Quanto aos específicos, o autor se deve ater às regras dos artigos 48 e 51 da Lei 11.101/05, especialmente.

Aquele que se encontra em crise e que anela a reestruturação empresarial há de agir com boa-fé objetiva, apresentando toda a documentação necessária e exigida por lei quando da distribuição da ação, pautando-se pela ética e lealdade processual.

O magistrado, ao analisar a petição inicial, haverá de efetuar o controle da regularidade formal do processo e da admissibilidade da ação. As questões relativas a ambos esses aspectos normalmente constituem, no seu conjunto, o objeto do despacho liminar, cabendo ao juiz, obviamente, examiná-las de ofício. Inicia-se, assim, a atividade de ‘saneamento’ do feito7.

Destarte, é de extrema importância a análise pormenorizada da petição inicial – verdadeiro divisor de águas quanto ao futuro da entidade mergulhada em crise econômico-financeira -, considerando os significativos e evidentes efeitos que decorrem da primeira deliberação judicial, mais especialmente aquela decisão que determinar o regular processamento da reestruturação empresarial, a teor do art. 52 da lei de regência, decisão essa que instaura nova fase de desenvolvimento do processo.

No caso de regime recuperatório judicial, a simples distribuição da ação já tem significativa relevância no meio empresarial e não apenas em relação ao devedor, de modo que espraia vários efeitos em relação aos colaboradores da pessoa jurídica devedora, aos credores e ao próprio mercado, por exemplo.

Ao receber a petição inicial para decisão inicial, poderá o magistrado: (i) acolher seus termos e determinar de imediato o processamento da reestruturação judicial8; (ii) determinará a realização de perícia prévia9, sendo que o laudo pericial poderá dar ensejo ao (ii.a) indeferimento da petição inicial; (ii.b) deferimento do processamento da reestruturação judicial, a teor do art. 5210; (ii.c) estando o principal estabelecimento do devedor situado em outro local, será determinada a remessa dos autos do processo ao juízo competente; (iii) determinar a emenda à petição inicial, nos termos do art. 321 [art. 317] do CPC, sendo que, cumprida a decisão judicial, poderá ser observada a regra do art. 52 da lei de regência; não cumprida, será indeferida a petição inicial e, por fim, (iv) há a hipótese de imediata aplicação do art. 330 do Código de Processo Civil, ou seja, indeferimento da petição inicial sem determinação de emenda11. As hipóteses para indeferimento da petição inicial estão previstas no art. 330 do Código de Processo Civil.

Ressalte-se, por oportuno, que não poderá ser aberta a falência neste momento – quando da análise da petição inicial -, considerando o fato de que as possiblidades para a retirada do devedor do mercado estão previstas no art. 73 (numerus clausus), inexistindo previsão legal para que eventualmente ocorra a abertura judicial de falência quando da primeira manifestação judicial. Acerca da questão, pondera Luiz Inácio Vigil Neto:

1) ‘A petição inicial não se encontra em condições de deferimento’: se não deferir pelo não atendimento de um ou vários requisitos, deverá observar algumas situações:

1.1) Se o indeferimento ocorreu da não-apresentação de documento ou não -atendimento de requisito indicado na lei, deverá o juiz conceder prazo razoável para complementação da petição inicial;

1.2) Se o indeferimento decorreu da impossibilidade de cumprir com algum (ns) pressuposto (s) ou condição da lei, deverá o juiz indeferir a petição inicial, encerrando o processo. Nestas situações não haverá base jurídica para a decretação de ofício da falência;

2) “A petição se encontra em condições de deferimento’: se todos os requisitos forem atendidos, o magistrado deferirá a petição inicial, autorizando o processamento do pedido.12

Quanto ao diagnóstico preliminar – incluído na lei especial em 2020, mas que de há muito era objeto de escritos por parte da doutrina -, por força de enunciado legal (art. 51-A), em caso de o magistrado reputar necessária a perícia, somente caberá determinar a perícia neste exato momento processual, ou seja, quando da análise da petição inicial, e não em outra etapa do processo.

O próprio nome já esclarece: o diagnóstico é preliminar à determinação de processamento da recuperação judicial. É, destarte, neste preciso passo processual, apenas, que será realizada, se for o caso [necessidade de se averiguar as reais condições de funcionamento da atividade econômica e regularidade/completude da documentação acostada], a prova técnica, e não em outro, de modo que, eventual observância da regra do art. 51-A após a prolação da decisão a que alude o art. 52 da lei de regência, se nos parece equivocada, salvo engano, considerando a inversão do procedimento, por assim dizer.

Em resumo, há somente um momento processual exato e expressamente previsto em lei para a realização da perícia prévia, que é justamente quando da análise da petição inicial da recuperação judicial. Considerando a sistemática prevista na Lei 11.101/05 não é possível a prolação da decisão prevista no art. 52, com a nomeação de administrador judicial, suspensão de ações etc., e, durante o procedimento da reestruturação – já com a participação de credores, publicação do edital a que alude o art. 52, §1º, determinar-se o cumprimento do art. 51-A. Salvo entendimento diverso, não parece correto o proceder, porquanto inverte a ordem do desenvolvimento da ação recuperacional.

Consoante bem esclarece Humberto Theodoro Júnior, o processo deve ser dividido numa série de fases ou momentos, formando compartimentos estanques, entre os quais se reparte o exercício das atividades tanto das partes como do juiz 13, de modo que o regime recuperatório não comporta a prolação da decisão prevista no art. 52 e depois, já no regular desenvolvimento do processo, determinar a realização de perícia.

Tal proceder – realização de constatação prévia fora do momento processual adequado -, salvo engano, pode desestabilizar o processo e criar insegurança jurídica a todos que dele participam, sem descuidar dos variados custos processuais. A lei prevê a realização da prova técnica antes que se determine o processamento da recuperação [art. 52] e não depois desta decisão.

A título de argumento, a hipótese de se determinar o processamento da recuperação judicial (art. 52) e no decorrer do andamento da ação restar entendido que caso é de perícia prévia, para fins exclusivos do art. 51-A, chegando-se à conclusão de que, v.g., a documentação exigida pelo art. 51 está incompleta, o indeferimento da petição inicial, neste momento, gerará desequilíbrio processual, insegurança jurídica e saída dos trilhos estabelecidos expressamente pela Lei 11.101/05.

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Com efeito, consoante exposto algures, é imprescindível analisar – quando do primeiro contato com a petição inicial da ação de reestruturação empresarial - se presentes todos os requisitos de admissibilidade de ação e se estão exaustivamente cumpridos todos os requisitos específicos contidos nos artigos 48 e 51 da Lei 11.101/05.

Caso o magistrado repute imprescindível a realização da prova técnica, à vista da documentação anexada, e não tendo segurança quanto as reais condições de funcionamento da “empresa” [atividade econômica], deverá determinar neste momento – fase postulatória - e não em outro, salvo engano. Após a prolação da decisão que determina o processamento da reestruturação judicial - aquela prevista no art. 52 -, inicia-se nova fase, que é justamente a fase instrutória, consoante melhor doutrina14, de modo que ultrapassada a fase postulatória.


  1. Advogado em Direito Empresarial desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; professor em Pós-Graduação; parecerista; pesquisador e autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.

    http://lattes.cnpq.br/5264249545377944

    http://orcid.org/0000-0002-6589-9761

  2. A recuperação judicial é uma verdadeira ação. Sendo assim, a petição inicial deve observar todos os requisitos legais previstos no Código de Processo Civil, acrescido dos requisitos específicos da ação de recuperação judicial, descritos no art. 51 da nova Lei. MONTE SIMIONATO, Frederico A. Tratado de direito falimentar. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2008, p. 153. Por sua vez, escreve Luiz Inácio Vigil Neto: a propositura da ação judicial que pretende a concessão da recuperação judicial da empresa tem o seu início procedimental a partir da elaboração e da distribuição da petição inicial. Teoria falimentar e regimes recuperatórios: estudos sobre a Lei 11.1101/05. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 160.

  3. Cf. TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial, volume 3: falência e recuperação de empresas. 4ª edição. São Paulo: Atlas, 2016, p. 59.

  4. Diz a lei que estando em termos a documentação exigida no art. 51, significa que a petição inicial está em consonância com a realidade e há de se determinar o processamento da reestruturação judicial.

  5. O art. 51, redigido com perfeição pelo legislador, é o crivo final, e por lá somente passará o devedor de boa-fé, aquele que sabe os caminhos da recuperação, e sabe que deverá também e necessariamente abrir por completo a sua situação financeira para demonstrar a sua viabilidade, devendo ter, com ponto de partida, ‘patrimônio líquido e fluxo de caixa suficiente para repactuar passivo presente – reduzindo custos – e honrar passivo futuro’. Isso é recuperação judicial, o resto será obra de estelionatário profissional. MONTE SIMIONATO, Frederico. Op., cit., p. 155, Destaques no original. Prossegue o autor: O art. 51 é a chave para o sucesso ou fracasso da nova Lei. Este sucesso fica condicionado ao fato da atuação do Judiciário em verificar se os requisitos lá exigidos foram cumpridos pelo devedor; caso contrário, deve indeferir o processamento da recuperação, mandando que emende a petição, porém, não declarando, obviamente, a falência. Op. cit., p. 165.

  6. Lei 11.101/05, art. 189.

  7. BARBOSA MOREIRA, José C. O Novo Processo Civil Brasileiro. 19ª edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1998, p. 22. Destaque no original.

  8. Lei 11.101/05, art. 52. A decisão inicial, em sendo positiva, apenas e tão somente observa se presentes no caso concreto os requisitos de admissibilidade da ação, nada mais que isso.

  9. Art. 51-A da lei. Acerca do tema relevante introduzida pela Lei 14.112/2020: ABRÃO, Carlos H; MARTINS, Lucilaine Braga L. Candido; CLARO, Carlos R. Destituição do devedor e remoção dos administradores de empresas em recuperação judicial. São Paulo: Quartier Latin, 2023; ABRÃO, Nelson. O novo direito falimentar. Nova disciplina jurídica da crise econômica da empresa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985; CLARO, Carlos Roberto. Recuperação Judicial: sustentabilidade e função social da empresa. São Paulo: LTr Editora, 2009. CLARO, Carlos R. Apontamentos sobre o diagnóstico preliminar em recuperação judicial. Abordagem zetética. In: ABRÃO, Carlos H., CANTO, Jorge L. L. do; LUCON, Paulo H. dos S. (coord). Moderno Direito Concursal. Análise plural das Leis ns. 11.101/05 e 14.112/20. São Paulo: Quartier Latin, 2021; CLARO, Carlos R. A Lei n. 11.101/2005 e o Perito Judicial. Algumas Reflexões. In: Revista Jurídica. Ano 72, agosto/2022, n. 538. São Paulo: Síntese, 2022. CLARO, Carlos R. O Artigo 64 da Lei de Insolvência. Algumas Considerações. In: Revista Jurídica. Ano 73, março/2023, n. 545. São Paulo: Síntese, 2023.

  10. Ou, nas palavras de Luiz Inácio Vigil Neto, a autorização de tramitação do processo, por parte do magistrado. Op. cit., p. 163.

  11. Assenta Humberto Theodoro Júnior: Não se recomenda uma interpretação ampliativa, ou extensiva, das hipóteses legais de indeferimento sumário da inicial. O correto será estabelecer-se, primeiro, o contraditório, sem o qual o processo, em princípio, não se mostra completo e apto a sustentar o provimento jurisdicional nem a solução das questões incidentais relevantes. O indeferimento liminar e imediato da petição inicial, antes da citação do réu, é de se ver como exceção. Novo Código de Processo Civil Anotado. 21ª edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2018, p. 430.

  12. Op. cit., p. 163. Destaques no original.

  13. Curso de Direito Processual Civil. Volume I. 58ª edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2017, p. 66.

  14. SILVA PACHECO, José da. Processo de Recuperação judicial, extrajudicial e falência: em conformidade com a Lei n. 11.101/05 e alteração da Lei n. 11.127/05. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006, p. 145.

Sobre o autor
Carlos Roberto Claro

Advogado em Direito Empresarial desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; Professor em Pós-Graduação; Parecerista; Pesquisador; Autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.

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