A inclusão do nome social nos documentos oficiais do imigrante e do residente fronteiriço, de acordo com o Direito Migratório brasileiro

18/03/2023 às 21:16
Leia nesta página:

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O tema referente à inserção do nome social em documentos oficiais tem ganhado maior visibilidade e aceitação pelo ordenamento jurídico pátrio, de índole cada vez mais inclusiva, com fulcro nos princípios da autoafirmação1 e da dignidade da pessoa humana.

Tal assunto também tem sido tratado no âmbito do Direito Migratório brasileiro, haja vista a sua orientação de maior acolhimento e solidariedade no tocante aos imigrantes e residentes fronteiriços, conforme se pode verificar dos princípios e das garantias discriminados na nova Lei de Migração2.

O presente artigo aborda o assunto do registro e da identificação do estrangeiro no Brasil, tratando da questão da inclusão do nome social nos documentos oficiais, expedidos pela Polícia Federal, em relação aos imigrantes e residentes fronteiriços, nos termos da nova legislação migratória.

1. REGISTRO E IDENTIFICAÇÃO DO IMIGRANTE E DO RESIDENTE FRONTEIRIÇO NO BRASIL

A Lei nº 13.445/2017 dispõe em seu artigo 19 que “O registro consiste na identificação civil por dados biográficos e biométricos, e é obrigado a todo imigrante detentor de visto temporário ou de autorização de residência”.

Tal registro gerará um número único de identificação, que garantirá ao imigrante o pleno exercício dos atos da vida civil (Art. 19, § 1º).

O artigo 19, § 2º acrescenta que o documento de identidade do imigrante será expedido com base nesse número único de identificação.

Detentor de visto temporário é aquele estrangeiro ao qual foi dada, por representação consular brasileira estabelecida no exterior, expectativa de autorização de ingresso no território nacional, com o intuito de fixar residência por prazo determinado, haja vista o seu enquadramento em alguma das hipóteses discriminadas no artigo 14 da Lei de Migração e reafirmadas pelo artigo 33 do Decreto nº 9.199/2017, ora transcrito:

Art. 33. O visto temporário poderá ser concedido ao imigrante que venha ao País com o intuito de estabelecer residência por tempo determinado e que se enquadre em, no mínimo, uma das seguintes hipóteses:

I - o visto temporário tenha como finalidade:

a) pesquisa, ensino ou extensão acadêmica;

b) tratamento de saúde;

c) acolhida humanitária;

d) estudo;

e) trabalho;

f) férias-trabalho;

g) prática de atividade religiosa;

h) serviço voluntário;

i) realização de investimento;

j) atividades com relevância econômica, social, científica, tecnológica ou cultural;

k) reunião familiar; ou

l) atividades artísticas ou desportivas com contrato por prazo determinado;

II - o imigrante seja beneficiário de tratado em matéria de vistos; ou

III - o atendimento de interesses da política migratória nacional.

Detentor de autorização de residência é aquele estrangeiro que, estando em território brasileiro, solicitou e obteve autorização para fixar residência no Brasil por prazo temporário ou definitivo, em razão de seu enquadramento em alguma das hipóteses relacionadas no artigo 30 da Lei de Migração e reafirmadas pelo artigo 142 do Decreto nº 9.199/2017, aqui descrito:

Art. 142. O requerimento de autorização de residência poderá ter como fundamento as seguintes hipóteses:

I - a residência tenha como finalidade:

a) pesquisa, ensino ou extensão acadêmica;

b) tratamento de saúde;

c) acolhida humanitária;

d) estudo;

e) trabalho;

f) férias-trabalho;

g) prática de atividade religiosa;

h) serviço voluntário;

i) realização de investimento;

j) realização de atividade com relevância econômica, social, científica, tecnológica ou cultural; ou

k) reunião familiar;

II - a pessoa:

a) seja beneficiária de tratado em matéria de residência e livre circulação;

b) possua oferta de trabalho comprovada;

c) já tenha possuído a nacionalidade brasileira e não deseje ou não reúna os requisitos para readquiri-la;

d) seja beneficiária de refúgio, asilo ou proteção ao apátrida;

e) que não tenha atingido a maioridade civil, nacional de outro país ou apátrida, desacompanhado ou abandonado, que se encontre nas fronteiras brasileiras ou no território nacional;

f) tenha sido vítima de tráfico de pessoas, trabalho escravo ou violação de direito agravada por sua condição migratória;

g) esteja em liberdade provisória ou em cumprimento de pena no País; ou

h) seja anteriormente beneficiada com autorização de residência, observado o disposto no art. 160; ou

III - o imigrante atenda a interesses da política migratória nacional.

O artigo 63 do Decreto nº 9.199/20173 esclarece que “A Carteira de Registro Nacional Migratório será fornecida ao imigrante registrado, da qual constará o número único de Registro Nacional Migratório”.

A base cadastral administrada pela Polícia Federal, responsável pelo registro dos imigrantes detentores de visto temporário ou de autorização de residência denomina-se Sistema de Registro Nacional Migratório - SISMIGRA4.

Observa-se que o residente fronteiriço também poderá ser registrado e receber a sua Carteira de Registro Nacional Migratório, obtendo, assim, autorização para a realização de atos da vida civil, inclusive atividade laboral e estudo, em determinado município limítrofe, nos termos dos artigos 89 do Decreto nº 9.199/2017.

Cabe salientar que o estrangeiro, na condição de visitante, não será registrado e nem receberá a Carteira de Registro Nacional Migratório - CRNM, tendo em vista a sua estada de curta duração no território nacional, sem intenção de fixar residência de forma temporária ou definitiva no Brasil.

Importante mencionar que nos termos do artigo 22 da Lei de Migração, “A identificação civil, o documento de identidade e as formas de gestão da base cadastral dos detentores de vistos diplomático, oficial e de cortesia atenderão as disposições específicas previstas em regulamento”5. O registro, nesses casos, será realizado pelo Ministério das Relações Exteriores, que expedirá a tais imigrantes a Carteira de Registro Diplomático - CRD, com validade em todo o território nacional. Referidos imigrantes estarão, portanto, dispensados da realização de registro junto à Polícia Federal.

2. CARTEIRA DE REGISTRO NACIONAL MIGRATÓRIO E DOCUMENTO PROVISÓRIO DE REGISTRO NACIONAL MIGRATÓRIO

Após devidamente registrados no sistema SISMIGRA, administrado pela Polícia Federal, os seguintes estrangeiros receberão, portanto, a Carteira de Registro Nacional Migratório - CRNM:

  • imigrantes detentores de visto temporário;

  • imigrantes detentores de autorização de residência; e

  • residentes fronteiriços.

Também serão registrados no SISMIGRA os solicitantes de reconhecimento da condição de refugiado, que receberão o Documento Provisório de Registro Nacional Migratório - DPRNM, conforme o disposto no artigo 119, § 2º do Decreto nº 9.199/2017.

Ressalta-se que, por meio da Portaria nº 11.264/20206, a Polícia Federal instituiu os novos modelos da Carteira do Registro Nacional Migratório e do Documento Provisório de Registro Nacional Migratório, divulgando, além dos modelos usuais (Anexo I), aqueles destinados especificamente aos estrangeiros que solicitarem a inclusão de seu nome social (Anexo II).

Segue modelo da CRNM tradicional, nos termos do Anexo I:

3. INCLUSÃO DO NOME SOCIAL NOS DOCUMENTOS OFICIAIS

O Decreto nº 8.727/20167, que dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, assim define em seu artigo 1º:

  • nome social - é a designação pela qual a pessoa travesti ou transexual se identifica e é socialmente reconhecida;

  • identidade de gênero - é dimensão da identidade de uma pessoa que diz respeito à forma como se relaciona com as representações de masculinidade e feminilidade e como isso se traduz em sua prática social, sem guardar relação necessária com o sexo atribuído no nascimento.

O artigo 4º do referido Decreto estabelece que “Constará nos documentos oficiais o nome social da pessoa travesti ou transexual, se requerido expressamente pelo interessado, acompanhado do nome civil”.

O artigo 6º assim complementa:

Art. 6º A pessoa travesti ou transexual poderá requerer, a qualquer tempo, a inclusão de seu nome social em documentos oficiais e nos registros dos sistemas de informação, de cadastros, de programas, de serviços, de fichas, de formulários, de prontuários e congêneres dos órgãos e das entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. (Brasil, 2016)

Nesse sentido, a Receita Federal do Brasil, por exemplo, expediu a Instrução Normativa RFB nº 1718/20178, estabelecendo a possibilidade de alteração dos dados cadastrais no Cadastro de Pessoas Físicas - CPF para inclusão ou exclusão de nome social de pessoa travesti ou transexual, mediante requerimento do interessado.

Segue o novo modelo do Comprovante de Inscrição CPF9, contendo campo específico para a inclusão do nome social, além do nome civil:

No tocante especificamente ao registro do nome e da nacionalidade do imigrante o artigo 69, § 4º do Decreto nº 9.199/2017 assim estabelece:

Art. 69. Para fins de registro, o nome e a nacionalidade do imigrante serão aqueles constantes da documentação apresentada, preferencialmente, o documento de viagem.

(…) § 4º O imigrante poderá requerer, a qualquer tempo, a inclusão de seu nome social em seus documentos oficiais. (Brasil, 2017)

Tal entendimento é reafirmado, ipsis litteris, pelo artigo 2º Portaria nº 11.264/2020, da Direção-Geral da Polícia Federal.

Convém considerar, todavia, que o Decreto nº 9.199/2017 e a Portaria DPF nº 11.264/2020 não restringiram o conceito de nome social à condição de cidadãos travestis ou transexuais, tal como fez o Decreto nº 8.727/2016.

Assim sendo, entende-se que no tocante à inclusão do nome social do imigrante e do residente fronteiriço nos documentos oficiais (CRNM e DPRNM), se deve fazê-lo de forma não restritiva, compreendendo a expressão nome social como sendo a forma pela qual a pessoa se reconhece e quer ser reconhecida, sendo, portanto, um direito inerente a todos, sem qualquer distinção10.

Depreende-se, portanto, que nome social, de acordo com o Direito Migratório brasileiro, consiste na forma como o imigrante ou o residente fronteiriço se autoidentifica, como deseja ser chamado e como é reconhecido no seu meio social, não consistindo, no entanto, em alteração de seu registro civil e nem em supressão de sua identidade civil.

Existem estrangeiros, por exemplo, cujos nomes são praticamente impronunciáveis no idioma português, sendo que tal situação justificaria a utilização do nome social, em atenção aos princípios da autoafirmação e da dignidade da pessoa humana.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Atenta a essa realidade, a Portaria DPF nº 11.264/2020, ao indicar os novos modelos da CRNM e do DPRNM, apresentou, em seu Anexo II, os modelos abaixo descritos, que deverão ser utilizados caso os estrangeiros requeiram a inclusão de seus nomes sociais nos documentos oficiais:

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pessoa que, pelas mais diferentes razões, fixa residência em outro país, enfrenta diversas dificuldades de adaptação decorrentes, principalmente, das diferenças do idioma e da cultura.

Preocupada em minimizar tais adversidades, a nova Lei de Migração brasileira adotou uma postura solidária e de acolhimento no tocante aos imigrantes e residentes fronteiriços, adequando-se, desse modo, aos preceitos da Constituição Federal de 1988.

Atenta a essa diretriz de acolhimento e de não discriminação, o ordenamento migratório brasileiro entendeu por bem providenciar a inserção dos nomes sociais dos imigrantes (detentores de visto temporário ou de autorização de residência), dos residentes fronteiriços e dos solicitantes de reconhecimento da condição de refugiado em seus documentos oficiais (Carteiras de Registro Nacional Migratório - CRNM e Documentos Provisórios de Registro Nacional Migratório - DPRNM), caso tal medida seja solicitada pelos interessados, proporcionando-lhes o direito fundamental de se reconhecerem e de serem reconhecidos da forma que lhes agrada, preservando-se, assim, os princípios da autoafirmação e da dignidade da pessoa humana.


  1. De acordo com o Dicionário Online de Português, Autoafirmação é o “ato de se autoafirmar, de expressar vontades próprias, liberdade e independência, geralmente buscando a aceitação da maioria, do meio em que se vive; afirmação. Defesa de pontos de vista, opiniões e direitos próprios”. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/autoafirmacao/>. Acesso em: 18 mar. 2023.

  2. BRASIL. Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017. Institui a Lei de Migração. Brasília, DF: Presidência da República, [2017]. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13445.htm>. Acesso em: 18 mar. 2023.

  3. BRASIL. Decreto nº 9.199, de 20 de novembro de 2017. Regulamenta a Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017, que institui a Lei de Migração. Brasília, DF: Presidência da República, [2017]. <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/decreto/d9199.htm>. Acesso em: 18 mar. 2023.

  4. Observa-se que a Portaria Interministerial nº 3, de 27 de fevereiro de 2018, estabelece procedimentos a serem adotados em relação à tramitação dos requerimentos de autorização de residência, registro e emissão da Carteira de Registro Nacional Migratório, especifica a documentação necessária para instrução dos pedidos e define o procedimento de registro de autorizações de residência concedidas a refugiados, apátridas e asilados. Disponível em: <https://sistemas.mre.gov.br/kitweb/datafiles/Cingapura/en-us/file/Portaria%2003-2018.pdf>. Acesso em: 18 mar. 2023.

  5. A Portaria nº 841, de 18 de outubro de 2018, dispõe sobre os procedimentos de registro e identificação civil dos detentores de visto diplomático, oficial ou de cortesia e dos portadores de passaporte diplomático, oficial ou de serviço que tenham ingressado no País sob acordo de dispensa de visto, e institui a Carteira de Registro Diplomático (CRD). Disponível em: <https://www.gov.br/mre/pt-br/assuntos/cerimonial/privilegios-e-imunidades/portaria-n-841-mre-2018>. Acesso em: 18 mar. 2023.

  6. BRASIL. Portaria nº 11.264, de 24 de janeiro de 2020. Institui, com validade em todo território nacional, novos modelos para Carteira de Registro Nacional Migratório - CRNM e Documento Provisório de Registro Nacional Migratório DPRNM. Brasília, DF: Direção-Geral da Polícia Federal, [2020]. <https://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-n-11.264-de-24-de-janeiro-de-2020-241103464>. Acesso em: 18 mar. 2023.

  7. BRASIL. Decreto nº 8.727, de 28 de abril de 2016. Dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/decreto/d8727.htm>. Acesso em: 18 mar. 2023.

  8. BRASIL. Instrução Normativa RFB nº 1718, de 18 de julho de 2017. Altera a Instrução Normativa RFB nº 1.548, de 13 de fevereiro de 2015, que dispõe sobre o Cadastro de Pessoas Físicas (CPF). Brasília, DF: Receita Federal do Brasil, [2017]. Disponível em: <http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=84588>. Acesso em: 18 mar. 2023.

  9. Receita Federal disponibiliza serviço de inclusão e exclusão de nome social no CPF. Receita Federal. Ministério da Fazenda. Governo Federal. Disponível em: <https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/noticias/2017/julho/receita-federal disponibiliza-servico-de-inclusao-e-exclusao-de-nome-social-no-cpf>. Acesso em: 18 mar. 2023.

  10. De acordo com a matéria denominada Nome Social: um direito de todas as pessoas, publicada no Portal Unificado da Justiça Federal da 4ª Região, O nome social é um direito conquistado por todas as pessoas que lutam pela troca do nome que representa um gênero com o qual não se identificam. É a forma pela qual uma pessoa se reconhece e quer ser reconhecida, e na prática não é exclusivo para pessoas transgênero, transexuais ou travestis, mas um direito de todas as pessoas. O nome social também é de interesse coletivo, porque identifica a pessoa pelo nome que ela é conhecida perante a sociedade, tanto para o exercício de seus direitos como para o cumprimento de suas obrigações. Mas atenção: o nome social não deve ser confundido com apelidos ou alcunhas (Zé Pequeno, Princesinha, Fumaça); nomes fantasia, nomes comerciais, religiosos; titulações profissionais, acadêmicas ou de qualquer ordem”. Disponível em: <https://www.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=pagina_visualizar&id_pagina=2207>. Acesso em: 18 mar. 2023.

Sobre o autor
Marco Antonio Ribeiro Coura

Advogado. Escritor. Delegado de Polícia Federal (aposentado). Foi diretor da Academia Nacional de Polícia entre 2012/2013. Foi adido policial junto à Embaixada do Brasil em Lima/Peru entre 2014/2016. Atuou na Polícia Federal do Paraná, Rio Grande do Norte, Distrito Federal e São Paulo por mais de 25 anos, com ênfase em Direito Migratório. Foi servidor do Tribunal de Justiça/SP e da Justiça Federal/SP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos