A Transação no Processo Administrativo Tributário Federal: Uma Evolução a Partir da Lei n.º 13.988/2020

25/01/2023 às 09:33
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Tem-se observado nos últimos anos, na legislação e jurisprudência pátrias, uma crescente valorização da autocomposição dos conflitos, tanto no âmbito judicial, com o incentivo das conciliações e mediações como forma prioritária de resolução das lides, quanto no âmbito extrajudicial, com a criação – ou fortalecimento – de institutos jurídicos diversos que independem da intervenção do Estado-Juiz para sua formalização e sua executoriedade. E, se em primeiro momento essa mudança de paradigmas limitava-se aos interesses privados disponíveis (art. 841, do Código Civil), atualmente o instituto tem avançado para a resolução de conflitos impregnados de interesse público, como na persecução estatal pela prática de infrações e – o que interessa para o presente ensaio – na esfera tributária.

Com efeito, o legislador ordinário, principalmente a partir da década de 1980, passou a inserir no ordenamento jurídico hipóteses em que o princípio da indisponibilidade do interesse público se viu mitigado em favor de outros princípios igualmente relevantes para a Administração Pública, como o da eficiência, da individualização da pena, da gestão colaborativa, entre outros. Nesse contexto, destacam-se a Lei n.º 9.099/95, que prevê a transação nas ações penais de crime de menor potencial ofensivo, a Lei n.º 9.469/97, que prevê a transação ou acordos para os ativos não tributários da União, o art. 10, parágrafo único, da Lei n.º 10.259/01, que prevê a possibilidade de transação nas causas de competência do Juizado Especial Federal, entre outros diplomas.

No âmbito do direito tributário, o artigo 171, do Código Tributário Nacional, já previa a possibilidade de transação entre o Fisco e o contribuinte com o efeito de extinção do crédito tributário (transação terminativa, portanto), dependendo, todavia, de autorização expressa por lei ordinária, à qual caberia estabelecer a competência, os limites e o procedimento para que fosse efetivada. Contudo, na prática, a omissão legislativa e, em certa medida, a falta de interesse dos setores responsáveis fortaleceram o dogma – equivocado – da inviabilidade de transação no setor, limitando seu reconhecimento, a partir de algumas vozes na doutrina e na jurisprudência, apenas à adesão pelo contribuinte a descontos e parcelamentos, previstos de forma abstrata, em troca da desistência da defesa[1].

De fato, tratando-se o poder de tributar de um interesse eminentemente público, sua disponibilidade, total ou parcial, concreta ou abstrata, depende de disposição legal expressa, que apresente os limites e os requisitos necessários para que a operação possa ocorrer de forma legítima, sem extrapolação das competências do agente na administração da coisa pública[2]. Daí porque a dificuldade em se estabelecer uma regulamentação mais ampla da matéria, que abarque, de forma abstrata, todo o contencioso tributário, mantendo-se uma administração exageradamente burocrática, beligerante com o contribuinte e pouco eficiente na satisfação dos créditos inadimplidos[3].

Essa situação perdurou até a edição da Medida Provisória n.º 899/2019, que passou a prever expressamente a possibilidade de a União, “em juízo de oportunidade e conveniência (...), sempre que, motivadamente, entender que a medida atenda ao interesse público” (art. 1.º, § 1.º), celebrar transações – inclusive extrajudiciais – de créditos tributário e não tributários, sob a administração da Receita Federal do Brasil (não judicializados) ou da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (inscritos em Dívida Ativa da União). A medida provisória – posteriormente convertida na Lei n.º 13.988, de 14 de abril de 2020, previu, ainda, a possibilidade de o acordo ser deflagrado pelo próprio contribuinte, por meio de proposta individual (art. 2.º), extrapolando, assim, as tradicionais propostas abstratas de parcelamento (REFIS), às quais o contribuinte apenas aderia, ou não, aos termos pré-estabelecidos, sem nenhum poder de negociação.

Como bem afirmou a equipe econômica, na exposição de motivos da minuta da medida provisória[4]:

[...] a transação é instrumento de solução ou resolução, por meio adequado, de litígios tributários, trazendo consigo, muito além do viés arrecadatório, extremamente importante em cenário de crise fiscal, mas de redução de custos e correto tratamento dos contribuintes, sejam aqueles que já não possuem capacidade de pagamento, sejam aqueles que foram autuados, não raro, pela complexidade da legislação que permitia interpretação razoável em sentido contrário àquele reputado como adequado pelo Fisco.

[...]

Ademais, a medida insere Procuradoria-Geral Federal e Procuradoria-Geral da União no mesmo modelo de resolução de litígios, seja a primeira no trato da Dívida Ativa das autarquias e fundações pública federais, na qual incluída dívida de natureza tributária (taxa), bem como a segunda, que também exerce relevante papel de cobrança de valores devidos ao erário.

Conclui-se, assim, que a promulgação da Lei n.º 13.988, de 14 de abril de 2020, resultado de conversão da Medida Provisória n.º 899/2019, consubstancia um avanço notável na adoção de instrumentos de autocomposição no âmbito tributário, contribuindo para a construção de uma administração fiscal mais colaborativa e democrática e, por consequência, mais eficiente.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 22 nov. 2020.

______. Lei n.º 5.172, de 25 de outubro de 1966. Código Tributário Nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ACP/acp-36-67.htm> Acesso em 22 nov. 2020.

______. Lei n.º 13.988, de 14 de abril de 2020. Dispõe sobre a transação nas hipóteses em que especifica... Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13988.htm> Acesso em: 22 nov. 2020.

______. Exposição de Motivos. Medida Provisória n.º 899, de 16 de outubro de 2019. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/Exm/Exm-MP-899-19.pdf> Acesso em: 23 nov. 2020.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números. Brasília, 2020. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB-V3-Justi%C3%A7a-em-N%C3%BAmeros-2020-atualizado-em-25-08-2020.pdf> Acesso em: 22 nov. 2020.

HARADA, K. Direito Financeiro e Tributário. 25. Ed. São Paulo: Atlas, 2016, pág. 625.

MACHADO, H. de B. Curso de Direito Tributário. 36. Ed. São Paulo: Malheiros, 2015, pág. 221-222.

OLIVEIRA, P. T. P. de. A transação em matéria tributária. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2013. Disponível em: <https://doi.org/10.11606/D.2.2017.tde-03042017-140125>. Acesso em 22 nov. 2020.


[1]  Kiyoshi Harada chama a atenção para a incorreção desse pensamento, na medida em que “esse desconto não se confunde com a transação, porque na maior parte das vezes não passa de um expediente utilizado pelo sujeito ativo para apenar o princípio da ampla defesa” (in: Direito Financeiro e Tributário. 25. Ed. São Paulo: Atlas, 2016, pág. 625). 

[2] Nesse sentido, já decidiu o STF que, “em regra, os bens e o interesse público são indisponíveis, porque pertencem à coletividade. É, por isso, o Administrador, mero gestor da coisa pública, não tem disponibilidade sobre os interesses confiados à sua guarda e realização (...)” (STF, RE n.º 253.885/MG, Rel. Ministra Elen Gracie, Primeira Turma, DJ 21/06/2002).

[3] De acordo com o relatório do Justiça em Números, do CNJ, “os processos de execução fiscal representam 39% do total de casos pendentes [em 2020] e 70% das execuções pendentes no Poder Judiciário, com taxa de congestionamento de 87%. Ou seja, de cada cem processos de execução fiscal que tramitaram no ano de 2019, apenas 13 foram baixados. Desconsiderando esses processos, a taxa de congestionamento do Poder Judiciário cairia em 8,1 pontos percentuais, passando de 68,5% para 60,4% em 2019” (2020, pág. 155).

[4] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/Exm/Exm-MP-899-19.pdf

Sobre o autor
Caio Marcus de Souza Dutra

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Tocantins - UFT. Servidor da Justiça Federal do Estado do Tocantins. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7166238713678559

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