A expressão do direito de ser livre: uma análise da Resolução nº 23.714/2022 do TSE à luz de preceitos nucleares da ordem democrática.

07/12/2022 às 16:10
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O presente artigo jurídico visa a elaborar uma análise crítico-construtiva acerca da recente Resolução nº 23.714/2022 do TSE, à luz de preceitos nucleares da ordem democrática.

A liberdade de expressão se constitui, por excelência, na pedra nuclear de uma ordem democrática. Inicia-se com essa frase, pois a construção argumentativa deste artigo centralizar-se-á nessa base principiológica. Primeiramente, faz-se uma breve compilação de diplomas normativos universais que garantem este direito fundamental. A declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789[1], em seu artigo 11, estipula que a livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do Homem; todo o cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na Lei.

Nesse interregno, é importante atentar que, apesar da vigência desse diploma universal, em 28 de fevereiro de 1933, o Presidente alemão Paul von Hindenburg (que posteriormente nomeia Adolf Hitler como Chanceler da Alemanha) positivou um decreto que suspendeu aspectos democráticos da Constituição da República de Weimar. Um dos direitos básicos suprimidos foi a liberdade de expressão[2]. A supressão da liberdade de expressão foi o vetor propulsor para a difusão inconteste da propaganda nazista. Como se contestam os atos políticos do Estado sem a possibilidade de exercer a livre expressão?

Após esse cenário, no afã de evitar, mais uma vez, a repetição de erros do passado, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 tornou a reafirmar a essencialidade da preservação da liberdade de expressão. Por meio desse diploma normativo internacional, em seu artigo 19, é garantido a todo ser humano o direito à liberdade de opinião e expressão. Esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras. Posteriormente, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966, em sua Parte II, o artigo 18 informa que toda a pessoa terá direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião, sendo que ninguém poderá ser submetido a medidas coercitivas que possam restringir essa liberdade (§2º).

É importante reforçar que os diplomas internacionais acima vistos impõem a previsão de responsabilidade por atos oriundos de abuso da liberdade de expressão. Contudo, responsabilidade em nada se assemelha com a supressão prévia desse direito!

O Brasil, ainda no século passado, também viveu um período de restrição desse direito fundamental. O Ato Institucional nº 05/1968 permitia ao Presidente da República, sem a previsão de garantia de um devido processo legal prévio, suspender os direitos políticos de qualquer cidadão pelo prazo de 10 anos (artigo 4º). A suspensão do direito político consistia, entre outros, na proibição de atividades ou manifestação sobre assuntos de natureza política (artigo 5º).

Como ocorreu com os diplomas internacionais, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB88) foi elaborada para enaltecer a inviolabilidade dos direitos fundamentais contra arbítrio estatais. A liberdade de expressão restou inserida no capítulo relativo aos direitos e deveres individuais e coletivos, no título relacionado aos direitos e garantias fundamentais, sendo expresso, no artigo 5º, incisos IV e V, respectivamente, que a todos é livre a  manifestação do pensamento (sendo vedado o anonimato). Aliado a isso, os incisos VIII e IX dispõem, respectivamente, que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política (salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei), bem como que é  livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.

Em artigo de minha autoria, citei a lição de Michel Foucault[3]. Acho essencial frisar, mais uma vez, o entendimento deste autor:

A liberdade de expressão é a principal ferramenta para a elaboração do discurso. Nessa linha, urge salutar trazer a lição de Michel Foucault[4], por meio da qual leciona que o discurso está em todo conjunto de formas que comunica um conteúdo, qualquer que seja a linguagem à qual pertençam. O filósofo refere, ainda, que mais importante que o conteúdo dos discursos, é o papel que eles desempenham na ordenação do mundo. Um discurso dominante tem o poder de determinar o que é aceito ou não numa sociedade, independentemente da qualidade do que ele legitima, ou seja, embora tal discurso não esteja comprometido com uma verdade absoluta e universal.

Diante dessa linha argumentativa, não se olvida a importância da liberdade de expressão para a formação do conteúdo dos discursos, não havendo que se falar em ordem democrática sem a garantia da preservação desse direito fundamental, pois, justamente, é o discurso dominante que irá determinar o que é aceito, ou não, dentro da sociedade atual.

Contudo, em meio à disputa eleitoral brasileira no corrente ano de 2022, o TSE editou a Resolução nº 23.714/2022. Alguns dispositivos normativos merecem ser destacados:

Art. 1º Esta Resolução dispõe sobre o enfrentamento à desinformação atentatória à integridade do processo eleitoral.

Art. 2º É vedada, nos termos do Código Eleitoral, a divulgação ou compartilhamento de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinjam a integridade do processo eleitoral, inclusive os processos de votação, apuração e totalização de votos.

§ 1º Verificada a hipótese prevista no caput, o Tribunal Superior Eleitoral, em decisão fundamentada, determinará às plataformas a imediata remoção da URL, URI ou URN, sob pena de multa de R$ 100.000,00 (cem mil reais) a R$ 150.000,00 (cem e cinquenta mil reais) por hora de descumprimento, a contar do término da segunda hora após o recebimento da notificação.

(...)

Art. 3º A Presidência do Tribunal Superior Eleitoral poderá determinar a extensão de decisão colegiada proferida pelo Plenário do Tribunal sobre desinformação, para outras situações com idênticos conteúdos, sob pena de aplicação da multa prevista no art. 2º, inclusive nos casos de sucessivas replicações pelo provedor de conteúdo ou de aplicações.

§ 1º Na hipótese do caput, a Presidência do Tribunal Superior Eleitoral apontará, em despacho, as URLs, URIs ou URNs com idêntico conteúdo que deverão ser removidos.

Art. 4º A produção sistemática de desinformação, caracterizada pela publicação contumaz de informações falsas ou descontextualizadas sobre o processo eleitoral, autoriza a determinação de suspensão temporária de perfis, contas ou canais mantidos em mídias sociais, observados, quanto aos requisitos, prazos e consequências, o disposto no art. 2º.

Parágrafo único. A determinação a que se refere o caput compreenderá a suspensão de registro de novos perfis, contas ou canais pelos responsáveis ou sob seu controle, bem assim a utilização de perfis, contas ou canais contingenciais previamente registrados, sob pena de configuração do crime previsto no art. 347 da Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965 - Código Eleitoral.

Em linguagem popular, o objeto desta resolução visa à supressão das chamadas fake news, tecnicamente denominada de desinformação atentatória à integridade do processo eleitoral. Uma primeira observação que merece ser feita, com relação à resolução em epígrafe, é que ela não se constitui de ato normativo primário, ou seja, não foi elaborada por Parlamentares devidamente eleitos pelo povo.

O seu artigo 2º estipula que é vedada a divulgação ou compartilhamento de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinjam a integridade do processo eleitoral, inclusive os processos de votação, apuração e totalização de votos. Ressalta-se que a resolução veda não somente fatos sabidamente inverídicos, mas fatos verídicos que seriam gravemente descontextualizados, e que visariam a atingir a integridade do processo eleitoral, processos de votação, apuração e totalização de votos.

Com a exposição desse cenário, questiona-se:

  1. Qual o critério objetivo para definir o que é fato sabidamente inverídico?
  2. Qual o critério objetivo para definir o que é fato verídico, mas gravemente descontextualizado?
  3. Qual é o parâmetro para definir qual fato está contextualizado?
  4. Qual é o parâmetro para definir o que é uma grave descontextualização de uma média ou leve descontextualização?
  5. Qual o critério objetivo para definir quais fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados atingem, ou não, a integridade do processo eleitoral?
  6. Com base nessa resolução, não se estaria institucionalizando um Poder Moderador, constituído por um único órgão do Poder Judiciário, ou, pior, a um único agente público, que passa a deter a competência/atribuição para definir o que é um fato verídico ou inverídico, dentro do processo eleitoral? Definir também qual fato está, ou não, contextualizado? Qual fato inverídico, ou verídico, mas descontextualizado, atinge a integridade do processo eleitoral?

As indagações acima referidas visam a, justamente, ilustrar o fato de que, deixando ao arbítrio exclusivo de um órgão do Poder Judiciário, ou a um único agente público, a atribuição de definir qual o conteúdo informativo é válido, qual fato é verídico e contextualizado, ou quais desses fatos atingem a integridade do processo eleitoral, estar-se-ia, sem sombra de dúvidas, fragilizando a ordem democrática. A liberdade de expressão não pode ser restringida, subjetivamente, e sem o devido processo legal, por qualquer Poder ou agente público, em um Estado Democrático de Direito. Não pode haver um único órgão ou agente com a competência exclusiva para definir quais fatos são verídicos dentro do processo eleitoral. Isso, inclusive, afronta o princípio da separação dos poderes e do sistema de freios e contrapesos[5].

Afora essas premissas, urge debater que a resolução também ofende, potencialmente, o devido processo legal, pelo menos diante de uma leitura isolada de seu texto. O princípio da inércia do Poder Judiciário é um princípio republicano o qual, em suma, resguarda que o Poder Judiciário não seja o inquisidor e o julgador de suas causas, demandando que o Poder Judiciário apenas se manifeste após a iniciativa de alguma parte com interesse jurídico. O Código de Processo Civil de 2015, expressamente, em seu artigo 2º, informa que o processo começa por iniciativa da parte e se desenvolve por impulso oficial, salvo as exceções previstas em lei.

Salvo melhor juízo, pela leitura isolada da Resolução nº 23.714/2022 do TSE, estar-se-ia conferindo a este órgão judicial-eleitoral a competência exclusiva e unilateral, de ofício, de exigir a remoção da URL, URI ou URN, que trate sobre a divulgação ou compartilhamento de fatos sabidamente inverídicos (a critério de quem?) ou gravemente descontextualizados (a critério de quem?) que atinjam a integridade do processo eleitoral, inclusive os processos de votação, apuração e totalização de votos. Haverá alguma parte que solicitará esta remoção ao TSE? O Ministério Público Federal? Os partidos políticos? A Resolução é silente sobre este aspecto crucial, deixando a entender que o Tribunal pode, de ofício, sem provocação prévia, definir quando, onde e contra quem aplicar essas disposições.

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Aliado a isso, também deve ser questionado em que momento poderá o autor do conteúdo sabidamente inverídico ou gravemente descontextualizado exercer o contraditório e sua ampla defesa? Também, nesse ponto, a resolução se mantém silente.

É importante ressaltar que a CRFB88 assegura, como direito fundamental, efetivando-se como cláusula pétrea, ou seja, sem a possibilidade de supressão, o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa (artigo 5º, LIV, LV[6]).

Em que pese a possível ofensa à liberdade de expressão, ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa, o STF, recentemente, ao julgar a ADI 7261/MC/DF, entendeu que a resolução do TSE não exorbita o âmbito da sua competência normativa e tampouco impõe censura ou restrição a meio de comunicação ou linha editorial da mídia imprensa e eletrônica. O STF, cunhando a expressão cedência específica, afirmou que:

Nesse contexto, o direito à liberdade de expressão pode ceder, em concreto, no caso em que ela for usada para erodir a confiança e a legitimidade da lisura político-eleitoral. Trata-se de cedência específica, analisada à luz da violação concreta das regras eleitorais e não de censura prévia e anterior.

Contudo, o STF não enfrentou a questão da possível ofensa ao devido processo legal, ao contraditória e à ampla defesa. Também, não houve o enfrentamento da execução dessas restrições de ofício pelo TSE, sem o peticionamento de alguma parte constitucionalmente legítima. E, outro ponto, o que é cedência específica?

Diante desse arcabouço argumentativo, ainda que questões como a possível ofensa ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa sejam pertinentes e deveriam ser objeto de análise, a questão central é: como há que se falar em ordem democrática se um órgão do Poder Judiciário, ou um único agente público, pode, unilateralmente, e sem critérios objetivos, sem o respaldo de lei stricto sensu, definir o que é fato inverídico e o que é um fato verídico descontextualizado. Existe algum Poder ou algum agente público que deva ser detentor dessa atribuição exclusiva, podendo definir, a seu próprio juízo subjetivo-valorativo, o que é verídico ou não?

O jurista brasileiro Ruy Barbosa certa vez asseverou que a pior ditadura é a do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer[7]. Ainda que as palavras sejam fortes, ela conclama que nós, operadores jurídicos, realizemos um juízo crítico e reflexivo sobre as recentes decisões e atos dos órgãos do Poder Judiciário. Aos próprios Ministros do STF cabe fazer uma reflexão do conteúdo e do alcance de suas recentes decisões, e como elas impactam na ordem democrática do país.

Novamente, reitero trecho referido em artigo de minha autoria[8]:

O discurso democrático não deve ser submetido ao crivo exclusivo de um Poder sobre as demais instituições do Estado. Ainda que correto, esse crivo seria, invariavelmente, arbitrário e ofensivo ao princípio democrático. Não se quer excluir a competência constitucional do Poder Judiciário de apreciação de lesão ou ameaça a direito, mas alertar que todas as competências constitucionais devem ser exercidas em respeito aos elementos constitutivos do Estado Democrático de Direito.

Em um regime democrático, o livre discurso é a ferramenta que confere ao cidadão a capacidade de ser politicamente livre. Responsabilidade por abusos deve sempre existir, mediante prévio e devido processo legal. A partir do momento em que o discurso deixa de ser livre, havendo uma força tirânica que o compele a se enquadrar dentro de limites subjetivos (e cada vez mais abrangentes) estipulados por um único Poder, ou pior, por um único agente púbico, passamos a correr o risco de trilhar o tortuoso caminho rumo ao totalitarismo. Não retrocedamos!

Sobre o autor
Régis Schneider da Silva

Atualmente, Assessor Jurídico - Especialista em Saúde - da Secretaria Estadual de Saúde do RS. Antigo analista processual da DPE/RS e analista de previdência e saúde do Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul - IPERGS. Especialista em Direito Penal e Processo Penal

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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