A Cerimónia de Invocação dos Antepassados da Cultura Manhaua (MUCUTHO), ofende a Moral, a Religião ou ao Direito?

21/11/2022 às 14:59
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Hélder Ernesto Injojo

Introdução

O tema por nós proposto, enquadra-se no amplo processo de estudo das culturas de Moçambique, uma ação que concorre para o melhoramento do conhecimento do rico mosaico cultural moçambicano. Pretende-se com o presente artigo abordar a cerimónia tradicional de invocação dos antepassados na cultura Manhaua (Mucutho), onde procura-se para além de aprofundar as razões e motivações desta prática cultural, responder as frequentes questões levantadas em torno desta prática costumeira, se ofende a moral, a religião e ao direito.

Os antepassados, segundo essa tradição, até hoje ocupam uma posição especial, participam em todas etapas de desenvolvimento e acompanham o dia a dia das comunidades, pese embora a evolução e a dinâmica da globalização que abre espaço para o contacto com outras realidades culturais.

Sendo esta prática cultural deveras interessante e com aceitação na atualidade, principalmente neste momento em que o impacto violento da globalização faz se sentir em todas as comunidades, achamos objeto bastante para desenvolver.

A Cultura Manhaua

Mecanismos de comunicação e personalidade

A cultura Manhaua é praticada pelas populações dos distritos do centro da Província da Zambézia- Moçambique, nomeadamente, Mocuba e Lugela e uma parte de Milange. Manhaua é uma cultura proveniente do bantu e os bantus, além do nítido parentesco linguístico, conservam um fundo de crenças, ritos e costumes similares, uma cultura com traços específicos e idênticos que os assemelha e agrupa, independentemente da identidade racial.

Os manhauas têm na tradição oral, a via para a transmissão de conhecimentos, a falta da escrita, não impede que se conserve um passado e a cultura sejam transmitidos e conhecidos. A literatura oral é uma grande riqueza cultural para o manhaua e esta carregada de respeito, vem do antepassado, é um mecanismo fulcral de comunicação e prolonga-se até ao individuo e a comunidade, cumprindo assim uma função de transmissão de herança. Para o manhaua, a palavra é a essência, ela permanece e transmite-se cautelosamente para as novas gerações.

A civilização negro-africana baseia-se na palavra; é essencialmente oral e a oralidade é completada por ritos e símbolos. Mas estes sem a palavra, sem a tradição tornam-se ininteligíveis e ineficazes. Em África o mundo é dominado pela palavra, a palavra é uma arte e há toda uma literatura elaborada pela oralidade (ALTUNA, 2014, p.38).

A língua materna da população manhaua é o manhaua, uma língua semelhante ao Lomwê e ao Chuabo. São várias as questões formuladas em relação a esta semelhança linguística e procura-se compreender qual delas deriva da outra. Olhando para o histórico de migração dos povos bantu, assumindo que provém dos Grandes Lagos e tendo passado pela Tanzânia e Malawi e mais tarde as costas do indico, faz nos acreditar que o chuabo é uma derivação do Manhua.

Para o manhaua, a partilha é uma exigência natural e sobretudo estrutural. Ela funda-se na unidade de vida, na relação reciproca entre descendentes do mesmo antepassado e estende-se numa fraternidade indissolúvel pelo facto de ter nascido numa família, clã e tribo, o que faz imergir uma corrente vital específica, incorpora e modela os modos de ser da comunidade. Os membros da tribo são um todo e cada membro é apenas parte integrante, visto que neles circula o mesmo sangue recebido do mesmo antepassado.

O dia a dia manhaua caracteriza-se por manifestações saudáveis de convivência social, como são os casos da comunhão plena de vida através da amizade, alegria, entretenimento, sofrimento, alimentos, trabalhos coletivos, ritos, cultos e outras que visam a trazer a harmonia entre semelhantes.

Para o Manhaua o ser humano nasce, cresce e more, mas permanece a sua alma que se juntará aos demais antepassados no mundo invisível e perto de Deus continuarão a influenciar a vida dos vivos. Esta visão manhaua é contrária a do direito, visto que em direito, a personalidade jurídica é adquirida com o nascimento com vida e cessa com a morte, enquanto que nesta cultura, a morte constitui um simples desaparecimento físico, porque continuará eternamente vivo como antepassado.

A alma é a vida e que sem ela não há vida. Para o manhaua a essência da pessoa humana reside no seu interior e as coisas vem do coração. Aqui o homem pensa através do coração, o cérebro é apenas um instrumento ao serviço do coração.

O coração do homem tem um significado especial, é o órgão mais humano e o centro unitário, onde reside a alma do ser humano e onde se fixa a sua personalidade. O coração é a base do ser e as pessoas bem-educadas, respeitosas, simpáticas, solidárias, são conhecidas como as que tem bom coração, coração bonito, coração aberto ou coração grande, dai que, as pessoas não devem ser apreciadas pelo seu aspeto exterior ou físico, mas sim pelo interior, pelo coração que possui, pois, a beleza reside no interior e não no exterior.

Invocação aos Antepassados

O mundo visível e invisível

Nesta cultura os mundos visíveis e invisíveis estão ligados por relações permanentes. No mundo visível estão os homens, os animais e as coisas, enquanto que no mundo invisível esta Deus, conhecido como a fonte da Vida e os antepassados (muzimo), que intervém pelos homens diante de Deus e interferem constantemente de forma benéfica ou maléfica no mundo visível. Os antepassados através dos espíritos têm um lugar especial na vida do manhaua, eles são verdadeiros protetores e acompanham a evolução dos seus parentes vivos.

Passa-se do mundo visível para o invisível através da morte. A morte é vista como uma perturbação da participação vital e uma verdadeira fragilidade humana, ela entristece o grupo e tem sempre um culpado, porque a morte não pode ser natural. A morte é o símbolo duma ação hostil, porque foi comida uma vida pelo feiticeiro família, pois, o feiticeiro alheio só pode entrar numa família quando apadrinhado por alguém da família. A morte é uma iniciação, pois o homem morto transforma-se em outro ser, existe de forma diferente e torna-se invisível. A morte realiza o acto de passagem do homem vivo para a sua nova realidade, a de antepassado.

Facto curioso é que o manhaua acredita na eternidade do ser humano através da alma, o que vale dizer que mesmo depois da morte terá uma vida perene porque a alma não morre, mas tem medo da morte, quando morre um dos seus membros, a família fica triste e inconsolável e procura alguém para responsabilizar, uma vez que a morte não pode ser natural, deve ter sempre um culpado.

Analisando os pressupostos do processo da responsabilização do presumível autor deste acto, pese embora os mecanismos serem do âmbito do obscurantismo, pode se aferir que inocentes são responsabilizados, ou ainda, os agentes mesmo que culpados não tem o direito a defesa, pois, o adivinho constata, julga e condena sem direito ao contraditório.

Outro sim, o valor atribuído aos antepassados cria contradições na medida em que esta crença nos antepassados conflitua com a crença em Deus. Pois, nos parece não haver clareza em relação aos poderes dos antepassados, bem como dos poderes de Deus.

Razões da cerimónia para invocação aos Antepassados

As relações entre os antepassados e o mundo visível, sobretudo para a sua comunidade de sengue é a de proteção. Os antepassados em grande parte vigiam, penetram e observam a todos, a sua influência é mística e vital, permanente e total. Os antepassados são referências, velam pela conduta dos seus descendentes e compensam, bem como castigam dependendo do nível de dedicação as práticas da família, a fidelidade as tradições, o respeito pelos mais velhos e pelos falecidos e o cumprimento permanente das cerimónias tradicionais.

Os antepassados estão por cima de todos os acontecimentos e jogam um papel importante e decisivo para a vida individual e comunitária, tais como, o nascimento, iniciação, casamento, procriação, prosperidade, sucesso, vida saudável, afugentam o mal, morte, tragédias e calamidades, entre outros. Os antepassados desempenham um papel estabilizador da sociedade.

Os progenitores antepassados sobrevivem permanentemente nos meandros da sua descendência e ocupam um espaço privilegiado, visto que realizam ações benéficas para os vivos e aumentam o dinamismo vital e em troca, os descendentes devem providenciar para os antepassados, o culto e o mucutho, facto que mantém e tornam agradável a convivência entre o mundo visível e o mundo invisível.

Cerimónia para invocação aos Antepassados

O mucutho organiza-se com intensidade e frequência, porque os espíritos dos antepassados devem ser acarinhados, atendidos e cuidados, em suma, devem ser constantemente venerados. A cerimónia visa manter acesa e benéfica a participação vital, bem como estreitar relações permanentes e boas com os ancestrais para o bem-estar da comunidade, pois, qualquer tentativa de rotura tem consequências nefastas.

A invocação aos antepassados não constitui superstição, nem idolatria, este acto brota como resultado da fé, da sobrevivência da pessoa e do dinamismo vital, do respeito e valorização pelo mundo invisível.

Os manhauas acreditam na existência duma outra vida pós-morte, por isso vivem em constante alinhamento com os antepassados e comportam-se muito bem para que possam usufruir da plenitude da vida pós-morte. A outra vida pós-morte, é onde residem os antepassados.

Os antepassados nunca são esquecidos, devem sempre ser invocados e chamados em todos os momentos da vida visível, como por exemplo, na fase do cultivo, da colheita, nas celebrações e até nos momentos tristes. O mucutho deve ser organizado sempre que as razões justificarem e nele participam os familiares e sobretudo com a presença dos mais velhos que conhecem muito bem o nome dos antepassados.

Todos os momentos devem ser partilhados com os antepassados e o mecanismo para a tal partilha é a realização desta cerimónia, que dependendo do objeto da partilha, pode se definir o nível e a qualidade dos participantes. Nas cerimónias anuais, onde são invocados os espíritos de toda família, a participação deve ser extensiva, com a presença dos mais velhos, bem como nos casos de celebração de grandes conquistas familiares, início e termino de grandes épocas e nas realizações com impacto para a comunidade.

Importa referir que as cerimonias anuais, normalmente são marcadas com a data da morte da matriarca ou patriarca, alguém importante da família, dai é assumida como uma ocasião para os encontros familiares onde são invocados todos os antepassados.

O mucutho também organiza-se pelos mais novos que por razões diversas estão distantes da família, bastando apenas seguir os rituais e sozinho chamar a atenção dos espíritos para que o possam acompanhar aonde estiver, de modo a evitar a solidão familiar, pois acredita-se que por mais longe que esteja, os espíritos o acompanham, porque o manhaua não fica sozinho, não caminha sozinho, não vive na solidão, mesmo caminhando sozinho num caminho do mundo visível, os espíritos dos antepassados que residem no mundo invisível estão sempre com ele e nunca o abandonam.

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Para o manhaua tudo deve ser partilhado com os espíritos, porque a presença deles e perene e são os protetores. Na sentada de amigos para beber o cathasso ou mesmo a laranjada, o brinde é feito com os antepassados entornando ou lançando para o chão algum cálice para que os espíritos possam beber também e abençoar.

Período e local para a realização da cerimónia

O mucutho é realizado no final do dia, quando o sol estiver a desaparecer e antes de anoitecer, no local tradicional da família como são os casos de, arvore frondosa e histórica, residência da matriarca familiar ou numa outra qualquer, desde que seja o ponto de encontro da família. Os que residem distantes da família, podem realizar nos locais onde residem, num quarto não participado por terceiros.

Para a realização do mucutho é necessário um tecido branco ou papel branco para os que não conseguem obter o tecido, farinha de mandioca, comida e bebida adorada pelos antepassados. A invocação é feita pela ordem hierárquica da família, portanto, começando pelos mais velhos e terminando com o mais novo dos participantes em mucuthos familiares e nos da comunidade, pelos régulos, anciões, autoridades locais (governamentais e partidárias), bem como outros influentes da respetiva comunidade.

Os invocadores vão chamando os espíritos deitando a farinha no pano branco, mencionando os seus nomes e apelando-os para que aceitem e recebam a oferenda, explicam a razão da cerimónia, formulam o pedido e os participantes em coro vão respondendo popa. Este exercício começa pelo mais velho como acima dissemos, de acordo a precedência na comunidade e replicado até ao mais novo definido para invocar os espíritos, construindo-se um monte de farinha por cima do pano ou papel branco.

A invocação é feita no meio de muito senso de humor, de disposição e alegria que caracteriza o manhaua, quando o monte se desfaz significa que a oferenda e os pedidos estão a ser aceites pelos espíritos e por fim batesse palmas para os espíritos. Depois da invocação, segue-se o memento das ofertas (comidas e bebidas). O dia em que se realiza o mucutho familiar, tem sido dia reservado para a convivência da Família, onde comem e bebem até a noite dentro, simbolizando a união e a coesão entre os membros do mundo visível com os do mundo invisível.

Não conseguimos encontrar uma resposta sobre as razões do uso do tecido ou papel branco, bem como da farinha branca para as cerimonias tradicionais, mas podemos presumir que tenha a ver com a pureza do branco.

Manifestação dos espíritos nas pessoas

Os espíritos quando satisfeitos ou insatisfeitos manifestam-se de forma indireta ou de forma direita. De forma indireta por via de resultados positivos dos pedidos formulados no mucutho ou pela materialização e alcance de grandes metas de cada um dos seus participantes e familiares, e de forma direta através de possessões, que pressupõe a descida de um antepassado para apoderar-se duma pessoa na forma de espírito e nele habitar e fazer dela o que bem entender.

A possessão acontece de forma maléfica, quando o espírito possui para fins maléficos à pessoa possuída ou para a sociedade no geral e a possessão benéfica é quando o espirito toma o individuo para realizar o bem para a comunidade, como são os casos dos adivinhos e curandeiros que realizam ações com orientação espiritual.

Ofensas a moral, a religião e ao direito

Ofensa a moral

Para constatarmos se cerimonia tradicional de invocação dos espíritos da cultura manhaua ofende a moral, vale em linhas gerais ser apresentada a definição conceptual da moral.

A moral é definida como um conjunto de regras provenientes do costume que regulam a esfera intima dos seres humanos, ou, conjunto de regras, costumes e formas de pensar de um determinado grupo social.

O termo Moral designa, tanto em latim como em grego, aquilo que se refere aos costumes, ao carater, as atitudes humanas em geral e, em particular, as regras de conduta. A moral pode ser definida também como um conjunto de regras que são seguidas no interior dos grupos humanos. (ROBINET, 2004, p.280).

Segundo (SILVANO, 2008), a moral é um conjunto de normas que regulam o comportamento do homem em sociedade, e estas normas são adquiridas pela educação, pela tradição e pelo cotidiano. A moral é tanto um conjunto de normas que determinam como deve ser o comportamento quanto ações de acordo ou não com tais normas (CORDI, 2003, p. 64).

A moral deve ser vista numa perspetiva de coletividade, um comportamento que ofende a coletividade, porque é conjunto de normas estabelecidas pela sociedade, resultante de praticas aceites e que catapultam a convivência e harmonia social.

Portanto, a moral é conjunto de regras aceites numa determinada sociedade, o seu campo de aplicação é maior que o do Direito, porque não são todas as regras Morais que são jurídicas, mas todas têm um objetivo comum, a efetivação de normas de controle social.

Neste sentido, não se vislumbra alguma ofensa à Moral social com a realização da cerimonia tradicional de invocação dos espíritos da cultura manhaua.

Implicação Religiosa

O fenómeno religioso é algo profundamente humano, pois radica na própria natureza do homem. Entre todas as criaturas só o homem é que manifesta o sentimento religioso. A Antropologia confirma-nos que não há povo sem religião. Todas as populações têm a sua própria cosmovisão e possuem um conjunto de crenças sobre o mundo sobrenatural. E pode-se afirmar que é verificável em todas as culturas o relacionamento do homem com o mundo invisível (MARTINEZ, 2014, p.184)

A religião é uma palavra pré-cristã e segundo o clássico latino Cícero, provém do vocábulo relegere, que, a sua vez, provém do verbo recolligere, com o sentido de: cuidar, tomar a sério, cuidar diligentemente. Segundo esta etimologia, religio é ter cuidado, fazer atenção, cuidar as coisas sagradas, prestar atenção ao númen (poder, grandeza divina, o sagrado), e ao que esta cheio de qualidades sobrenaturais (MARTINEZ, 2014, p.185)

Seguindo este raciocino, podemos afirmar que a cerimónia tradicional de invocação de antepassados na cultura manhaua, reforça as crenças religiosas, pois, as mesmas visam a enaltecer e acarinhar os residentes do mundo invisível, nomeadamente Deus e os Antepassados, que na essência constituem seus seres sagrados, mas com Deus acima de todos e de tudo na sua qualidade de Criador do Ceu e da terra, de todas coisas visíveis e invisíveis. Para o manhaua Deus é Imenso, Omnipresente, esta em todo lugar e em cada um.

Implicações jurídicas

O direito representa o desenvolvimento de um conjunto de estratégias sócio-adaptativas, resultantes de um processo histórico evolutivo entre factores biológicos e culturais, um complexo desenho de normas de conduta e valores para solucionar problemas relacionados com a crescente complexidade da vida em sociedade. O Direito e as normas jurídicas existem unicamente porque o homem, como paradigma das espécies culturais, estabelece relações sociais e o direito é parte da condição humana, resultado da dinâmica social do homem em conjunto o mundo das representações culturais.

Quando uma norma jurídica é posta em causa, falamos de valores, porque os valores não estão desassociados de outras dimensões da vida humana e das diferentes culturas, é dai que o Direito desempenha um papel fundamental, visto que não existe vida social sem o Direito e o mesmo provém do Direito consuetudinário, razão pela qual o costume constitui uma fonte de Direito.

Nas sociedades primitivas era através do costume que o Direito se formava, como emanação instintiva da coincidência social, como, usos, práticas, tradições que se tinham gerado de maneira insensível e gradual, transmitiam-se de pais a filhos e pautavam juridicamente a conduta dos homens. O costume é uma figura curiosa, ela cria o Direito através da sua própria observância pois uma pessoa adota determinado critério de conduta, porque acha razoável, outros procedem-se da mesma maneira e generaliza-se e acatasse como Direito (TELLES, 2010, p.115).

A Constituição da República de Moçambique, estabelece no seu artigo 11, alínea i) que, o Estado moçambicano tem como objetivos fundamentais, dentre outros, a afirmação da identidade moçambicana, das suas tradições e demais valores sócio-culturais. Este articulado constitucional, apresenta o espírito de valorização da identidade cultural, respeito pelas tradições e valores que norteiam o mosaico cultural moçambicano.

Professor Bacelar Gouveia escreve que, a discussão em relação aos costumes como fonte de direito é até certo ponto inútil em Moçambique, dada a circunstância de o próprio texto da CRM ter tomado posição no assunto, admitindo a relevância directa do costume como fonte de Direito, em dois centrais preceitos constitucionais, na medida em que não contrariem os valores e os princípios fundamentais da Constituição (GOUVEIA, 2015, p.515).

Por isso, o costume de invocação dos antepassados através das cerimonias tradicionais não tem implicações jurídicas, porque não é contra legem, por outras palavras, o mucutho não contaria o ordenamento jurídico moçambicano.

Conclusão

Pese embora o fenómeno da globalização, a cultura manhaua continua a conservar os seus valores políticos, sociais e jurídicos, elementos importantes para a conservação de costumes e tradições duma comunidade, a cultura manhaua assenta sobre os vários sentidos, nomeadamente, o material, espiritual e o humanista, social, étnico e universal, pois, cria premissas para um ambiente frutuoso e uma convivência carregada de valores de irmandade, solidariedade, fraternidade, humanidade, reciprocidade, entre outros que agregam valores a um povo.

Esta cultura da ao homem a capacidade de reflexão sobre si mesmo, faz do homem seres especificamente humanos, racionais, críticos e eticamente comprometidos com a comunidade, bem como a sociedade. Por meio da cultura, o manhaua discerne os valores e faz opções.

A cultura manhaua é social, comunitária e constitui um conjunto de experiencias adquiridas através da história que formam o património cultural dessa população. A cultura manhaua não é transmitida biologicamente, ela é transmitida através de um processo de aprendizagem e socialização de geração em geração.

O mucutho é uma prática reiterada de consideração aos antepassados, um modo de ser e de estar, com os seus significados, valores e expressões, é uma opção conveniente para convivência harmoniosa entre o mundo visível e o invisível, o fim último de todo ser humano. Nestes termos, concluímos que a cerimónia manhaua de invocação dos antepassados é um ritual cultural que não ofende a sociedade global, não fere a moral, não põe em causa a religião e não viola o Ordenamento Jurídico Moçambicano.

Referências Bibliográficas

ALTUNA, Raul. Cultura Tradicional Bantu. 2ª edição. Maputo: Editora Paulinas; 2014

CIPRE, Felizardo. Educação Tradicional em Moçambique. Maputo: Edimel; 1992

GOUVEIA, Jorge Bacelar. Direito Constitucional de Moçambique. Editor IDILP; Lisboa;2015

MARTINEZ, Francisco Lerma. O Povo Macua e sua Cultura. 2ª edição. Maputo: Editora Paulinas; 2008

__________. Antropologia Cultural. 7ª edição. Maputo: Editora Paulinas; 2008; 2014

NGOENHA, Severino Elias. Resistir a Abadon. Maputo: Editora Paulinas; 2017

ROBINET, J-F. O tempo do pensamento. São Paulo: Paulus, 2004

ROCHA, Aurélio. Moçambique: História e Cultura. Maputo: Texto Editora; 2006

TELLES, Inocêncio Galvão. Introdução ao Estudo do Direito. 11ª edição. Coimbra Editora; 2010

Constituição da República de Moçambique de 2004

Sobre o autor
Hélder Ernesto Injojo

Advogado, Deputado e Doutor em Direito.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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